A cheia do Rio Negro forma, todos os anos, um cenário comum em Manaus: casas alagadas e lixo que torna a orla da cidade um tapete de detritos em movimento causado pelo balanço da água – o banzeiro. Também é padrão a ação do poder público para evitar o isolamento dos moradores: construir passarelas de madeira.
Para o arquiteto e urbanista Emanuel Moraes, as alagações em Manaus precisam ser analisadas como um todo e não apenas por partes. “A relação do amazonense com seus rios é histórica. As comunidades ribeirinhas moldaram seus modos de habitar conforme as condições do território e a dinâmica natural das cheias”, diz.
Emanuel Moraes cita o exemplo da antiga Cidade Flutuante que existiu em frente à orla do Centro de Manaus entre os anos de 1920 e 1960. “Em seu auge, chegou a ter cerca de 1.950 casas flutuantes e mais de 12 mil moradores. Só após intensa repercussão nacional as autoridades tomaram medidas para remover seus habitantes, transferindo-os para bairros como Alvorada, Coroado e Santo Antônio”.
O urbanista cita a raiz do problema. “Quando analisamos com mais atenção, percebemos que os alagamentos são apenas sintomas de um problema estrutural mais profundo: o déficit habitacional e a falta de planejamento urbano orientado para inclusão”.
Segundo ele, a pressão demográfica causada pela migração interna, tanto do interior do Amazonas quanto de outros estados, aliada à pobreza e à indiferença do poder público, criaram o ambiente ideal para o crescimento da informalidade. “Sem acesso à moradia regular, milhares de famílias passaram a autoconstruir suas casas em áreas ambientalmente frágeis, como as margens dos igarapés”.
Para Emanuel Moraes, “se os alagamentos são sintomas, as pontes provisórias de madeira e as interdições temporárias são apenas placebos”. “Não atacam a raiz do problema, mas a cura existe e está ao alcance de cidades que planejam com seriedade”.
O especialista critica a abordagem atual dos programas habitacionais. “Programas habitacionais como o Minha Casa, Minha Vida têm impacto limitado. Apesar da boa intenção, suas unidades são frequentemente implantadas em áreas periféricas, desconectadas da malha urbana consolidada”.
Ele cita o urbanista francês Alain Bertaud para reforçar seu argumento. “Cidades eficientes são aquelas que permitem acesso fácil ao emprego e aos serviços por meio de densidade e conectividade. Quando a moradia popular é localizada em zonas isoladas, as famílias acabam penalizadas com longos deslocamentos e alto custo de vida”.
Necessidade de planejamento
A arquiteta e urbanista Melissa Toledo, vice-presidente do CAU-AM (Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Amazonas), complementa a análise. “Quando a gente enfrenta as enchentes de Manaus, eu estou pensando como uma visão de urbanista, integrando ao planejamento urbano a longo prazo”, afirma.
Melissa Toledo enfatiza que as alagações revelam “um problema que é crônico, que é profundo, que está enraizado, que está dentro do tecido urbano de Manaus e gera a vulnerabilidade das populações que vivem em áreas alagáveis”. Ela diz que muitas dessas áreas estão “situadas em bacias hidrográficas, em cursos d’água e com uma ocupação precária” resultado “de um processo histórico do nosso crescimento desordenado e com problematizações de habitação, saneamento, enfim, a infraestrutura urbana”.
A especialista aponta uma “fragmentação entre políticas de urbanismo, entre a habitação, a paisagem natural versus a paisagem construída, consolidada e essa gestão dos riscos”. Para Melissa, é preciso “avançar em políticas de planejamento integrado que envolva a regularização fundiária, que envolva o reassentamento em áreas de risco, a ampliação dos sistemas de drenagem, a requalificação ambiental dos cursores d’água, de uma forma integrada”.
Mudanças no modelo urbano
Emanuel Moraes defende uma mudança radical no modelo de desenvolvimento urbano de Manaus. “É comum atribuir a crise habitacional à ausência de planejamento, mas o que falta, na verdade, é um plano diretor que funcione como ferramenta de viabilização da cidade real e não como um obstáculo ao seu crescimento natural”.
O urbanista critica as atuais restrições. “Em Manaus, o atual Plano Diretor e sua legislação derivada impõem restrições excessivas de uso e ocupação do solo: afastamentos obrigatórios, zoneamentos rígidos e baixos índices de aproveitamento tornam as construções mais caras e desestimulam o adensamento. Como consequência, há menos oferta de habitação formal, os preços sobem e a população de baixa renda é empurrada para a informalidade”.
Citando a urbanista e ativista social Jane Jacobs, ele argumenta que “cidades vivas e resilientes nascem da diversidade e do uso misto, não de projetos monofuncionais e segregadores”. “Hoje, repensar o adensamento e a ocupação dos centros urbanos é urgente”.
Papel do lixo na crise
O ambientalista e pesquisador do IPAM (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia), Carlos Durigan, explica como o descarte irregular de lixo agrava as enchentes. “A Amazônia é uma região tropical onde as chuvas são intensas e sazonais, e as cheias dos rios acontecem naturalmente há milênios. As populações amazônidas sempre conviveram com esses fenômenos. No entanto, o adensamento populacional acelerado e a ausência de políticas públicas eficazes de planejamento urbano nos trouxeram a um cenário de caos”.
Durigan afirma que Manaus “ainda carece de uma estrutura eficiente de gestão de resíduos sólidos, conforme previsto na Política Nacional de Resíduos Sólidos — estabelecida há mais de 15 anos”. Para ele, “o descarte irregular de lixo contribui diretamente para o entupimento de canais e igarapés urbanos, impedindo o escoamento das águas pluviais e ampliando o impacto das cheias”.
O ambientalista ressalta que estamos vivendo os efeitos diretos da emergência climática, com extremos de secas e cheias se tornando cada vez mais frequentes. “É fundamental, portanto, construir uma agenda pública de adaptação que inclua também a superação dos problemas históricos de saneamento, habitação e descarte de resíduos”.
Prosamim
O secretário de Estado de Desenvolvimento Urbano e Metropolitano e da Unidade Gestora de Projetos Especiais (UGPE), Marcellus Campêlo, cita o Prosamin+ como principal resposta estrutural do governo estadual. “O Programa Social e Ambiental de Manaus e Interior é uma política pública estruturante, que atua em três frentes integradas”, diz.
“O programa trabalha com habitação e reassentamento. Retiramos famílias que vivem em áreas de risco e sob palafitas reassentando-as em moradias dignas, com infraestrutura completa. Desde 2019, mais de 3 mil famílias foram reassentadas em Manaus, o que representa cerca de 15 mil pessoas”, diz Campello.
Habitação e limpeza urbana
O secretário municipal de Habitação e Assuntos Fundiários Jesus Alves diz que a prefeitura tem “atuado com firmeza na construção de soluções duradouras, com foco na habitação, reassentamento e regularização fundiária de famílias que vivem em áreas de risco ou sujeitas a alagamentos”.
Um exemplo concreto, segundo Alves, é “a priorização de áreas impactadas por alagações nos processos de seleção de beneficiários dos nossos empreendimentos habitacionais”. “Com a nova Portaria nº 26/2025, publicada nesta semana, estabelecemos critérios objetivos de vulnerabilidade, incluindo moradores de áreas de risco ambiental”.
Emanuel Moraes resume a necessidade de mudança. “Urbanismo não é apenas técnica, é também política, cultura e economia. Para enfrentar os alagamentos e seus impactos sociais, Manaus precisa de uma nova abordagem: promover a regularização fundiária, incentivar o adensamento nos bairros com infraestrutura, recuperar áreas degradadas com inteligência e qualidade urbana, e garantir o direito à cidade a todos os seus habitantes”.
Melissa Toledo conclui destacando a importância da continuidade. “Na verdade, eu estou sendo até repetitiva de situações que eu já venho falando em outros momentos sobre o planejamento urbano integrado, que não existe políticas públicas sem uma campanha e uma continuidade de educação urbana ambiental”.
Fonte: Amazonas Atual/Foto: Thiago Gonçalves/AM ATUAL