Minutos antes de conversar com o g1, Karla Vieira, de 40 anos, recebeu uma mensagem da Caixa Econômica Federal, cobrando o pagamento de uma dívida de mais de R$ 100 mil no Fundo de Financiamento Estudantil (Fies). É um pesadelo, como ela mesma define, que já dura mais de 10 anos.
📝 Como tudo começou? Em 2012, Karla participou da promoção “Uniesp Paga”, oferecida pelo grupo educacional privado Uniesp (que atualmente agrega faculdades de 100 municípios, em 9 estados brasileiros). Pelo contrato, a aluna poderia se matricular pelo Fies, sem se preocupar em pagar o financiamento. Bastaria cumprir determinadas obrigações (como prestar serviços voluntários e tirar boas notas) para que todas as parcelas fossem pagas pela própria Uniesp.
☹️ Por que isso virou um pesadelo? Karla aceitou a proposta e seguiu as regras do programa. No entanto, como a Justiça já atestou nesse caso, a instituição de ensino não fez a sua parte: recusou-se a bancar o financiamento.
Resultado: assim como outros alunos que acreditaram na promoção, a ex-aluna está com o “nome sujo” e recebe cobranças mensalmente da Caixa até hoje, já que o contrato estava no nome dela (não no da universidade).
Segundo o Ministério Público Federal (MPF), cerca de 50 mil estudantes participaram desse programa, e parte deles ainda enfrenta a dor de cabeça de quem tem dívidas de mais de R$ 100 mil. Eles lidam, por exemplo, com a impossibilidade de comprar imóveis ou de pegar empréstimos no banco.
Mais abaixo, o g1 conta histórias como a de Felipe Battista, que deve R$ 145 mil e não consegue pagar um advogado, e a de Maria Dantas, que perdeu a causa na Justiça por falta de provas concretas.
Karla processou a Uniesp, venceu a ação após 3 anos, mas ainda aguarda a execução da sentença. “É muito frustrante, porque cumpri tudo; é uma sensação de ter sido enganada”, diz. O grupo educacional, hoje apresentado também sob a marca de Universidade Brasil, nega as acusações e diz que sempre foi “fiel aos seus princípios e propósitos de agir com transparência e comprometimento” (leia mais abaixo o posicionamento da empresa).
Além de todos os processos individuais, existe uma ação civil pública, movida pelo MPF, que busca limpar o nome dos estudantes e obrigar a Uniesp a ressarcir os cofres públicos. Por enquanto, mesmo sem a conclusão da ação, os réus (diretores da universidade) estão com R$ 2,3 bilhões em bens pessoais bloqueados.
Nesta reportagem, você verá:
- como funcionava a promoção;
- quais eram os artifícios para enganar os alunos, segundo o MPF, advogados e vítimas;
- histórias de estudantes que não conseguem dar um fim ao “pesadelo” de terem assinado esse contrato do Fies;
- os desdobramentos dos casos na Justiça.
O que diz o grupo universitário
Até a última atualização desta reportagem, a Uniesp não respondeu aos questionamentos específicos do g1 sobre as acusações de que o grupo mudava as condições do contrato sem avisar aos estudantes ou deixava de pagar as dívidas mesmo daqueles alunos que cumpriram com suas obrigações.
À reportagem, a instituição enviou uma nota (confira a íntegra no fim do texto) em que nega ter funcionado em esquema de “pirâmide financeira” e afirma que sempre agiu na “vanguarda da inclusão social”, “fiel aos seus princípios e propósitos de agir com transparência e comprometimento”. Também reforça que milhares de estudantes de baixa renda foram beneficiados pela promoção “Uniesp Paga”.
Como funcionava a promoção?
- 👨🎓 Lançada em 2012 e já extinta, a promoção “Uniesp Paga” buscava recrutar novos alunos por meio de vagas no Fies. A proposta era a seguinte: em vez de os próprios estudantes terem de pagar o financiamento após se formarem, a universidade que prometia quitar a dívida.
- ⛪ A divulgação da campanha acontecia em igrejas e em ONGs.
- 📝 Como contrapartida, os alunos tinham de apresentar “excelência acadêmica”, tirar no mínimo nota 3 no Enade (exame de avaliação da qualidade das graduações, cuja pontuação varia de 1 a 5), prestar serviços sociais (6 horas por semana) e pagar as taxas de amortização do Fies (R$ 50 a cada três meses).
Pessoas muito carentes foram atraídas por essa promoção. Faziam uma redação, eram aprovadas e depois direcionadas ao Banco do Brasil ou à Caixa, para [fecharem] um financiamento no nome delas.
— Daniela Guilherme, advogada que diz já ter atendido centenas de alunos com esse problema
“Os valores das mensalidades financiadas eram até três vezes maiores do que em outras faculdades. Havia um superfaturamento, além de tudo.”
A Caixa Econômica Federal, que fez as cobranças, ressaltou que, “quando acionada, nos casos em que há decisão [na Justiça] favorável ao estudante, realiza a suspensão da cobrança e a exclusão dos cadastros restritivos”.
O Banco do Brasil, que também opera o Fies, não havia respondido até a última atualização desta reportagem. E o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), responsável pelo programa de financiamento, afirma que tem contribuído com os órgãos de fiscalização na “apuração de supostas irregularidades praticadas pela Uniesp no âmbito do Fies”.
Por que alunos alegam que foram enganados?
- 📋 Segundo o Ministério Público e estudantes que se sentiram lesados pela universidade, a Uniesp mudava as regras da promoção no decorrer do curso, colocando medidas mais rígidas, com validade retroativa, sem avisar aos alunos.
- 📑 Exemplo: Quando assinaram o contrato, os estudantes foram informados de que precisariam manter uma “excelência acadêmica”. Mas, segundo as investigações, foi só em agosto de 2014 que a universidade acrescentou no regulamento interno (sem comunicar a ninguém) o detalhe de que todos deveriam tirar, no mínimo, nota 7 nas disciplinas.
- Resultado: de acordo com o MPF, dos cerca de 50 mil beneficiários, 32.908 foram excluídos do programa por supostamente não terem cumprido as regras. Com isso, a Uniesp eximia-se de pagar os financiamentos desse grupo.
Em outros casos, entre os 16.444 que continuaram na promoção, há alunos como Karla (citada no início da reportagem), que chegaram até a receber o certificado da universidade comprovando que seguiram todas as obrigações contratuais. Mesmo assim, depois da formatura, começaram a receber ligações de cobrança e descobriram que suas mensalidades no Fies não haviam sido pagas pela Uniesp.
“Os alunos acreditavam que tinham cumprido as obrigações assumidas e apenas tomavam conhecimento da exclusão abusiva, determinada pelos réus, quando as cobranças do financiamento eram iniciadas pelos agentes financeiros”, afirma o MPF.
“Surpreendidos, não tinham como arcar com as dívidas, sofrendo agora todas as consequências, como a inclusão de seus nomes em órgãos de proteção ao crédito, restrições de novos empréstimos e descontos em folha de pagamento de uma dívida que, em última análise, não lhes incumbe.”
O g1 questionou o FNDE sobre o número de alunos da Uniesp inadimplentes no Fies, mas não havia obtido resposta até a última atualização desta reportagem.
No último levantamento, de 2019, enviado pelo órgão ao MPF, havia 38.429 contratos em fase de amortização com parcelas atrasadas, representando uma dívida de mais de R$ 222,3 milhões. Se aplicadas as multas, o valor chegaria, à época, a R$ 1,3 bilhão.
💵 Sem advogado, Felipe convive com dívida de R$ 145 mil

*G1