Uma das maiores especialistas em câncer infantil do país, a pediatra Silvia Brandalise nunca pensou em trabalhar na área. Pelo contrário, fugia dela. “A chance de sobrevida naquela época era inferior a 5%. Com a missão de pediatra, não queria cuidar de uma criança que eu sabia que ia morrer”, conta. A médica tinha 35 anos e era chefe da enfermaria de pediatria da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que funcionava na Santa Casa de Campinas, quando um paciente de 5 anos com leucemia a “nocauteou”. Aos prantos, o menino puxou a saia de Brandalise e a implorou para que o atendesse, após uma série de imperícias médicas que atrasaram o diagnóstico e tratamento da criança. “Foi o choro dele que me fez mudar de ideia. Esse é o meu ponto fraco”, confessa.
Então recorreu a um ex-professor da Escola Paulista de Medicina, que trabalhava em um hospital de Memphis, nos Estados Unidos, referência em câncer infantil. Ele a orientou a seguir um determinado protocolo de tratamento da doença. Depois disso, ainda veio ao Brasil passar um mês para ensinar a Brandalise tudo o que sabia.
A vida da médica nunca mais foi a mesma. Pediu demissão da chefia da enfermaria de pediatria e passou a dedicar-se ao câncer infantil. Para isso, Brandalise precisava de um espaço separado para atender os pacientes com câncer pediátrico. “Não dava para misturar com outros doentes e correr o risco de pegarem uma infecção”, afirma.
Em 1978, com o apoio de um clube de mulheres de Campinas, o Clube da Lady, começou a funcionar o Centro Infantil Boldrini – com laboratórios, sala de quimioterapia e ambulatório, e prestação de serviço gratuito aos pacientes e famílias. Em 1994, a partir de uma doação do Instituto Robert Bosch, conseguiram montar um hospital em um terreno de 1.500 m2. Com a ajuda de outras instituições e empresas, o espaço hoje tem 40 mil m2 de área construída e 80 leitos de internação. Cerca de 80% da clientela é do SUS e 20% de convênios privados.
Sob a direção de Brandalise e com a colaboração de docentes da Unicamp, o Centro Boldrini tornou-se um dos principais hospitais e institutos de pesquisa de câncer infantil do Brasil. “Câncer é a primeira causa de morte relacionada a doenças em crianças. Hoje temos índice de cura de 80% para os pacientes, mas tem centros internacionais com 90%. Então temos que sair da zona de conforto e tentar chegar aos 90 também.”
Prestes a completar 81 anos – 46 deles à frente do Boldrini, Brandalise nem pensa em parar de trabalhar: “Mesmo que não consiga andar, vou de muleta, depois de cadeira de rodas, e assim vai.” A médica inclusive já tem um novo projeto que quer tirar do papel: criar o primeiro hospital de doenças pediátricas raras do Brasil.
Abaixo, os principais trechos da entrevista com Silvia Brandalise.
MARIE CLAIRE É difícil imaginar algo mais triste do que uma criança com uma doença como câncer. Em que momento a senhora decidiu que sua vida seria lidar com isso diariamente?
SILVIA BRANDALISE Dar um diagnóstico de uma criança é sempre doloroso. Quando vemos os tumores na tela, até hoje é sofrido. Mas agradeço a Deus por ficar triste, porque aí não tenho sossego. Preciso sempre estudar e buscar conhecimento para acabar com essa doença.
Quando me formei em pediatria e fui ser professora na Unicamp, escolhi uma profissão em tempo integral na universidade. Não tenho perfil para vender conhecimento em escritório privado. E na pediatria, quando aparecia paciente com câncer, eu mandava para médicos de adultos que tratavam câncer. A chance de cura era inferior a 5%. Com o desejo de ser pediatra, não queria cuidar de uma criança que eu sabia que ia morrer.
Mas alguns anjinhos me motivaram a cuidar deles. Fui nocauteada por um menino de cinco anos de idade, com leucemia, em 1978. Com muita insistência e choro, puxando minha saia, pediu para eu cuidar dele. Sendo chefe de pediatria da Santa Casa, tive que pedir autorização ao chefe do departamento para sair. O conselho foi contra, exceto por um docente. Então pedi demissão e falei: “Que pena que vocês não autorizaram, mas tenho que atender esse menino e montar esse serviço.”
Não dá para uma criança fazer quimio dentro de uma enfermaria geral, do lado de outra com infecção. Precisava de um lugar separado de internação. Um professor da Unicamp, John Cook Lane, articulou um jantar com o presidente da Bosch e nos deram o terreno e um milhão e meio de dólares para construir os primeiros leitos.
MC O que te fez aceitar o desafio e aprender isso do zero?
SB O choro da criança. As lágrimas foram o grande fator que me fizeram mudar radicalmente de vida. Ele era sobrinho de uma residente nossa de pediatria. Ela me levou na Unicamp e me pediu para ver o sobrinho. Falei que minha suspeita era de leucemia e encaminhei ele para a Escola Paulista, onde me formei, e o professor catedrático cuidaria do menino. Semanas depois, ela me pediu pra ver de novo. O professor tinha discordado do meu diagnóstico. Pedi para tirar um pedaço do gânglio do menino, e mandei tudo para os EUA, a um grande hospital de câncer infantil de Memphis. Um ex-professor meu, João Rhomes Aur, trabalhava lá e me falou: um diagnóstico tão fácil não sei porque você colheu tanto material. Depois comecei a ver outros erros no tratamento do menino. Foi aí que ele chegou desesperado chorando me implorando para cuidar dele.
Pedi para esse professor vir ao Brasil e ficar um mês para me ensinar tudo que eu precisava saber. Ele veio e depois me falou para criar um protocolo brasileiro de hematologia. Nos anos 1980 lancei em nível nacional, junto com a Sociedade Brasileira de Hematologia e Hemoterapia (SBHH), o primeiro protocolo de tratamento da Leucemia Linfoide Aguda (LLA) da criança. Durante mais de 30 anos, no Boldrini chegamos próximo a 70% de sobrevida em casos de leucemia. E agora chegamos a quase 80%.
MC Já ouvi a senhora dizer que ‘choro’ é o seu ponto fraco. E a senhora foi trabalhar justo numa área em que deve ver muita gente chorando. Como é isso para a senhora?
SB Vejo mais gente dando sorriso do que chorando, viu. Porque a criança tem uma coisa que chama resiliência. Ela muda a percepção quando vê algo alegre. Tem capacidade de transformar a dor e esquecer dela. Aprendi com elas a deixar nas nuvens todas as surpresas. Quando fico com o coração apertado, dor na alma, jogo para Deus e peço para ele cuidar. E fico com a tarefa humana de estudar de maneira contínua. Tenho acesso a artigos científicos novos, novas drogas, novas terapias. São campos com caminhos de esperança.
MC O que a senhora aprendeu ao longo desses anos todos? Mudou a forma como encara a vida e a morte?
SB De aprendizado, levo que a nossa missão mais importante é servir ao próximo, sem medo. Jogar fora o medo, o desespero. Carregar sempre a esperança. Substituir a dor pela esperança. Saber que precisa servir ao próximo muda suas necessidades. Você não se preocupa com acúmulo de riqueza, mas em como diminuir o sofrimento das pessoas. A morte nunca me preocupou. Todos nós viemos com uma tarefa para cumprir, bem ou mal. Morte é missão cumprida, descanso.
MC Mesmo quando se trata da morte de uma criança?
SB Sobre a morte de crianças, agradeço os poetas e artistas. Tem um texto de um poeta desconhecido, de quem o Henfil gostava muito. Ganhei esse poema escrito em um papelzinho de uma mãe no enterro da filha dela. Ela veio me agradecer pelo tratamento e entregou o poema, que a reconfortava muito. Diz assim: Se não houver frutos, valeu a beleza das flores; se não houver flores, valeu a sombra das folhas; se não houver folhas, valeu a intenção da semente.
A morte da criança sem dúvida deixa um recado para os familiares. Aceito a morte sem tristeza, como uma missão de vida cumprida.
MC Ouvi uma história de que a tentativa de suicídio de um menino te fez repensar a arquitetura do hospital. Como foi isso?
SB Eu trabalhava na Santa Casa, e o lugar era uma pobreza. Na enfermaria, tinha uma área de terapia intensiva com 50 leitos. O Hamilton, de uns 7 anos, estava na terapia intensiva, com leucemia, quando ele cortou os pulsos. Me chamaram, ele estava todo ensanguentado. Perguntei o que tinha acontecido e ele disse que não suportava mais ficar naquele quarto. Em mais de 10 anos, eu nunca tinha reparado na pobreza gritante, na feiura do quarto. A gente vai se acostumando com as coisas feias. Era horroroso. Ele disse que o que mais o molestava era onde a mãe dele dormia, no chão. Eu achava normal. Adulto diminui a capacidade de percepção. Depois percebi a lástima. Prometi a ele que ia fazer um hospital só para tratar a doença dele. E com um quarto para cada criança, com apenas um leito, uma janela bonita, para ver as nuvens, o sol, as plantas. E prometi fazer um quarto para a mãe, com cama e banheiro. Sou chantagista com criança. Prometi três coisas e pedi uma promessa dele: não repetir o que ele tinha feito. O Hamilton faleceu quando foram inaugurados os primeiros leitos, alguns anos depois. Chamei a mãe dele para mostrar. Na hora de pensar no projeto do hospital, falei tudo isso para o arquiteto.
Com as crianças, aprendi que elas têm uma percepção completamente diferente. A alegria, o cotidiano, a escola, as plantas, têm que estar no hospital. Isso modifica a percepção do ambiente hospitalar. Tem muitos que a gente dá alta e eles dizem que não querem ir embora. Criam uma relação de afeto, tem brinquedoteca, pedagogia hospitalar, aula de desenho, pintura. Fazemos a ponte do hospital com a escola de origem. Nenhuma criança para a escola. Temos doentes adolescentes fazendo vestibular, Enem aqui dentro. Queremos levar para o Brasil uma nova visão do que é um hospital para crianças.
Nosso comprometimento transcende o câncer. Estamos com um projeto para doenças raras de crianças. Vamos construir um novo hospital, com 200 leitos. Devemos fazer próximo da Unicamp, do Boldrini, do Hospital da PUC, com docentes dessas universidades orientando os médicos. O desenho arquitetônico e de engenharia do hospital é de um sobrevivente de câncer de criança. Ele me falou: “Vou fazer uma planta circular. Para ter um jardim para cada quarto, tem que ser assim”. E aí eu vi que ele tinha sido tratado de câncer. Estou atrás de um terreno nessa região, de 30 mil metros quadrados. Serão 14 sub especialidades pediátricas. Vai funcionar como entidade filantrópica, como o Boldrini. Estou esperando a doação do terreno, depois faço a campanha para ganhar dinheiro. Desconheço outro hospital de doenças raras de crianças. Acho que será o primeiro.
MC Como é o dia a dia da senhora, aos 80 anos? Pretende se aposentar?
SB Começo o dia às cinco e meia da manhã. Faço café para o meu marido – ele sempre fez para mim, agora sou eu que faço. Começo o trabalho às 7h30 e termino no fim da tarde. Saio mais cedo para deixar os jovens aprendendo. Há dois anos saí da linha de frente, de atendimento, e agora analiso o que foi feito. Vejo o que precisa melhorar. Isso faz com que você fique ainda mais crítica. Passo visita uma vez por semana e estou em todas as reuniões clínicas de discussão, uma a cada dia da semana. Também passo informações do que pude estudar de casos difíceis.
Assinei minha aposentadoria compulsória da Unicamp em 2013. Não queria, mas fui obrigada. Me convidaram para ser professora voluntária, mas me neguei. Marido que me abandona depois não vem mandar roupa suja para eu lavar. Depois de um ano, fundei o PEOp. Os alunos têm acesso a essa programa nas férias, período integral, onde aprendem a raciocinar, não fazem clínica. Aprendem como raciocina sobre o câncer para desenvolverem iniciação científica. Está na 12a edição com número crescente de alunos de graduação, de várias partes do Brasil.
MC A senhora nem pensa em parar de trabalhar?
SB Não, não. Já ouviu falar em outra senhorinha, a Madre Teresa de Calcutá? Ganhei uma bandeirinha com um escrito dela que diz algo assim: nada te detenha. Se você não puder mais andar, use a muleta. Não deixe oxidar o ferro que existe em você. Mesmo que eu não consiga andar, vou de muleta, cadeira de rodas, e assim vai.
MC A incidência de câncer em pessoas com menos de 18 anos continua a aumentar?
SB A incidência do câncer em crianças e adolescentes, abaixo de 19 anos, aumenta no mundo inteiro. A cada década, aumenta 1%. É uma linha ascendente, mas não é nenhum pico. O câncer da criança é uma doença rara, 2% de todos os cânceres no geral. Mas esse incremento, notado por pesquisadores, levou à criação de um grupo internacional vinculado à Agência Internacional de Registro de Câncer e à OMS, para avaliar quais fatores podem estar relacionados.
Se sabe que o câncer é uma doença multifatorial. Ou seja, vários fatores podem influenciar, como vírus: HIV, HPV, Epstein-Barr, Hepatite. Alguns medicamentos, excesso de hormônios e corticoides também. Produtos ambientais, alguns tipos de metais pesados, agrotóxicos também estão relacionados. Radiações não naturais, como raio-x, tomografia, radioterapia, também estão relacionados. Existe uma busca internacional para avaliar todos esses fatores e quais preponderam em determinadas regiões.
Tem um estudo na Itália, feito durante 10 anos, da incidência do câncer pediátrico em regiões mais e menos desenvolvidas economicamente. Encontraram maior incidência nas regiões mais desenvolvidas, o que leva a reforçar que talvez o fator ambiental de poluição esteja relacionado.
Um grupo da Dinamarca estudou durante 40 anos pais que trabalhavam em indústria de tinta. Viram que a exposição do pai e da mãe a produtos usados ocasionou maior incidência de câncer em seus filhos. Isso reforça a necessidade de olhar de maneira contínua para a exposição ambiental.
MC Existe alguma particularidade no cenário brasileiro, considerando o alto uso de agrotóxicos?
SB O primeiro cenário que se levanta sobre a questão de agrotóxicos no Brasil foi o estudo de 2006 feito pelo Instituto Nacional do Câncer, em parceria com o Boldrini e outras instituições de pesquisa. Juntamos 307 lactentes [crianças de até 2 anos] com leucemia e aplicamos um questionário aos pais de exposição a medicamentos, hormônios e pesticidas. Também investigamos drogas, como o uso da maconha. Vimos que um nível significativo de associação foi de uso de hormônios na gravidez e de ciclofloxacicina, remédio usado para infecção urinária. Os pesticidas também tiveram importância significativa no uso doméstico. Isso foi publicado em uma revista internacional e motivou o convite para Campinas entrar num grande grupo internacional de pesquisa do câncer da criança, que atualmente está no 12 ano de vida. São 14 países, quase todos desenvolvidos, e o Brasil faz parte. Se mostra de maneira evidente que certas exposições levam à carcinogênese – o que ativa o aparecimento do câncer.
MC A senhora participou de um estudo da OMS que reuniu um grupo de cem mil gestantes e crianças para acompanhá-las durante 18 anos. Já pode concluir algo desse estudo?
SB Não concluímos antes de terminar o número total. Estamos próximos de 50 mil gestantes. Não fazemos análises interinas, nem temos o direito, porque pode levar a conclusões erradas. Não tem prazo para terminar o estudo.
O grande referencial do Boldrini é que, nesses 46 anos de vida, de 10 mil crianças com câncer encaminhadas ao Boldrini, 7 mil estão vivas. Essa trajetória foi feita com íntima colaboração da Unicamp. O Boldrini ajudou o Ministério da Saúde a formar cinco centros de imunofenotipagem para câncer de criança. Também presta serviços de educação nas 67 Unidades Básicas de Saúde da região para quando suspeitar do câncer da criança. Ainda temos um atraso de meses no diagnóstico no Brasil. Isso é relevante porque o diagnóstico precoce é essencial.
MC Quais são os outros entraves para o tratamento de câncer infantil no Brasil?
SB Precisa destravar a burocracia no encaminhamento de pacientes no Sistema Único de Saúde, e fazer as universidades incluírem no programa curricular o ensino de oncologia. Por incrível que pareça, das mais de 300 faculdades no país, só 30% tem a disciplina de oncologia na grade curricular. Se a faculdade não ensina câncer, como o médico vai suspeitar de câncer? Temos que reduzir o tempo de espera para fazer tomografia ou ressonância. Tem hospital que demora 5 meses para fazer um exame. Outra tarefa: quando o Brasil fica desabastecido, importantes medicamentos têm que ser importados. Um país não pode não ter medicamentos essenciais.
MC Quais são as particularidades do câncer infantil? São mais difíceis de serem tratados?
SB Os resultados de sobrevida de câncer pediátrico são melhores do que os de adultos. A maior parte é causada por tumores embrionários, que são tumores de células germinativas. A segunda característica é que tem um rápido desenvolvimento e capacidade de metástase. O câncer da criança precisa ser urgentemente tratado e o esquema de quimio pra criança é muito mais agressivo. Crianças não podem ficar em fila de espera para fazer biópsia. Não podem esperar para receber resultados e nem para a guia do convênio autorizar o tratamento. O convênio quer dar autorização para cada guia de quimioterapia, mas definiram que tem um mês para avaliar. Tivemos que mandar por escrito que não podemos esperar um mês.
Como o câncer pediátrico é agressivo, precisa de um forte esquema de quimioterapia. Tem que ganhar na primeira batalha mais de 90%. Não pode deixar as células malignas ficarem resistentes à quimio. Também temos que ficar alerta para tudo que contamina o meio ambiente.
Fonte: Revista Marie Claire/Foto: Divulgação.