Em meio às chuvas no Rio Grande do Sul, efeito direto da crise climática, senadores pretendem apreciar o Projeto de Lei 3.334/2023, que reduz a reserva legal na Amazônia, hoje em 80%, para 50%. Na prática, o texto permite que donos de imóveis rurais na região possam desmatar até metade de seus lotes, o que hoje é proibido pelo Código Florestal.
O PL seria avaliado na quarta-feira pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ), a mais importante do Senado, mas foi retirado de pauta após a repercussão negativa da agenda. A previsão agora é que seja apreciado na semana que vem.
À CNN Brasil, o presidente da CCJ, senador Davi Alcolumbre (UB-AP), respondeu que o adiamento se deu porque o relator da proposta, senador Márcio Bittar (UB-AC), está de licença médica.
Para A CRÍTICA, o senador Plínio Valério (PSDB-AM), membro da Comissão de Meio Ambiente do Senado (CMA), avaliou que a proposta não deve avançar, mesmo se for pautada na CMA. Questionado sobre se era a favor ou contra o texto, o parlamentar respondeu que “esse não é o momento de discutir esse tipo de projeto”.
Essa não é a primeira vez que a proposta chega perto de ser votada na CCJ. O texto já recebeu parecer favorável da Comissão e seria avaliado em sessão no mês passado, mas a pauta foi adiada após pedido de vista da senadora Eliziane Gama (PSD-MA), que é contrária à proposta.
Caso seja aprovado e sancionado, o PL terá impacto no Amazonas, que possui 57,3% de áreas preservadas, segundo dados da Secretaria Estadual de Meio Ambiente, incluindo unidades de conservação municipais (1,13%), estaduais (12,13%), federais (16,97%) e terras indígenas (27,07%).
O que diz o texto
De acordo com o PL 3.334/2023, de autoria do senador Jaime Bagattoli (PL-RO), a redução da reserva legal vale apenas para o estado ou o município que tiver mais da metade (50%) do território ocupado por unidades de conservação da natureza de domínio público, por terras indígenas ou áreas de domínio das Forças Armadas. Estas últimas não estavam na proposta original, mas foram incluídas pelo senador Mecias de Jesus (Republicanos-RR).
No texto-base, o senador Jaime Bagattoli defendeu que a alteração no Código Florestal é importante para sanar o que ele considera uma ‘injustiça’, se referindo à restrição para o não desmatamento de 80% dos terrenos.“Com a aprovação desta proposta legislativa, esperamos incentivar o desenvolvimento dos municípios amazônicos que já cumprem relevante papel na conservação da floresta, alcançando a almejada sustentabilidade em seu tripé fundamental – ambiental, econômico e social”, escreveu.
O PL ainda retira o requisito de os estados terem Zoneamento Ecológico-Econômico aprovado para que possa ocorrer a redução da reserva legal e estabelece um prazo máximo para o Conselho Estadual do Meio Ambiente se manifestar (60 dias) sobre pedidos dessa ordem. Se não for cumprido, a ausência de manifestação será considerada concordância com a redução da reserva legal.
Riscos
Para A CRÍTICA, a engenheira agrônoma e doutora em Fisiologia Vegetal Muriel Saragoussi ressaltou que o Brasil já vive os efeitos da crise climática, logo, propostas deste tipo tendem a acentuar o problema.
“Estamos vendo o desastre que está acontecendo agora no sul do Brasil e que tem uma relação direta com os eventos extremos do clima, devido à ação humana. São os humanos que estão mudando o clima do planeta e nós estamos pagando o preço dessa mudança já. Não é daqui a 10 anos, 20 anos ou 50 anos, nós já estamos pagando isso”, alerta.
Para Saragoussi, que integra o Conselho Nacional de Meio Ambiente, a redução da reserva legal impediria o Brasil de cumprir com uma série de acordos internacionais que são importantes, por exemplo, para que o país atraia investimentos.
“É um problema, porque impede o Brasil de cumprir com os acordos internacionais que o país já assinou e se comprometeu. Por exemplo, o acordo de Paris, da Convenção do Clima. A proposta impede a gente de chegar a uma meta nacionalmente determinada de não contribuir com o aumento da temperatura do planeta acima de 1,5 graus”, afirma.
Perdas
Em nota, o Ministério do Meio Ambiente e da Mudança Climática ressaltou que os impactos de uma redução da reserva legal na Amazônia equivale a um desmatamento potencial de 28,1 milhões de hectares de floresta, ou 281.661 km². Para efeito de comparação, esse é o tamanho do estado do Rio Grande do Sul (281.707 km²), que vem sofrendo com a crise climática.
Em nota técnica publicada no mês de abril, a organização não governamental WWF Brasil criticou o projeto e defendeu a necessidade de recuperar a floresta, não autorizar mais desmatamento.“Trata-se de um grave retrocesso socioambiental ao flexibilizar os limites da reserva legal e abrir caminho para novos desmatamentos em áreas florestais da Amazônia Legal. Entendemos que a solução para as propriedades rurais, para a Amazônia e para o Brasil, não é desmatar mais e ter floresta de menos. Mas, ao contrário, reflorestar, recuperar a floresta”, diz o posicionamento da entidade.
O contrário
Para Muriel Saragoussi, o que está se propondo para a Amazônia é o contrário à visão de se criar uma economia próspera da floresta em pé. Ela afirma que está se criando uma economia que é efêmera, que se acaba rapidamente, de uso dos recursos naturais como a madeira. E ressalta que há um custo gigantesco para o clima e para a região, e os únicos que vão se beneficiar são uma pequeníssima elite de madeireiros e destruidores. Não é a população amazônica.
“O senador que fez a proposta disse que isso vai beneficiar os 30 milhões de habitantes da Amazônia. Isso não vai beneficiar esses 30 milhões. Se isso beneficiar 10 mil pessoas ou 10 mil empresas, vai ser muito. E quem vai pagar o pato disso vão ser os mais pobres. Vão ser aqueles que moram nos igarapés, que são ribeirinhos. Vão ser aqueles que, dentro das cidades, estão à mercê de enchentes ou secas extremas. Essas pessoas que estão propondo esse tipo de mudança legislativa, que só favorecem a destruição e não constroem absolutamente nada, essas pessoas vivem no século XIX. Elas não se deram conta que estamos no século XXI e a economia que o mundo vai viver no futuro ou é uma economia sustentável e respeitosa à natureza, ou não será nenhum tipo de economia, será o caos climático”, disse.
Foto:Michael Dantas/AFP/ *A crítica