Por muito tempo a política foi considerada um espaço reservado apenas aos homens. No Brasil, as mulheres só conquistaram o direito ao voto 1930 e, apenas em 1979 chegaram ao Senado da República. A primeira mulher a quebrar a hegemonia masculina foi Eunice Michiles, uma paulista que construiu carreira no Amazonas e entrou para a história como a primeira senadora do país.
Eunice foi apresentada à política por meio do seu marido, o ex-prefeito de Maués Darci Michiles. Segundo dados da Agência Senado, o casal já estava separado quando ela, em 1974, elegeu-se deputada estadual. Seu plano era tentar a reeleição para Assembleia Legislativa do Amazonas em 1978, mas ela foi convencida pelo partido Arena a disputar o Senado.
Pelas regras da época, tanto o Arena quanto o MDB lançavam três candidatos ao Senado. A apuração se dividia em duas etapas. Primeiro, verificava-se qual partido havia somado mais votos. Depois, qual candidato do partido vencedor havia sido o mais votado.
O Arena não desejava que Eunice vencesse. O candidato preferido da Arena era João Bosco, vice-governador do Amazonas, mas os 33 mil votos de Eunice foram decisivos para a vitória dele.
Como não nutria a ilusão de que pudesse passar à frente do vice-governador, Eunice só topou embarcar numa candidatura ao Senado depois de obter da Arena a promessa de que, em troca, seria nomeada secretária estadual de Serviços Sociais. Foi o que ocorreu.
No entanto, com a morte inesperada do senador João Bosco, em decorrência de um acidente vascular cerebral (AVC) , ela precisou assumir como senadora pelo Amazonas, em 1979.
A histórica posse ocorreu em 31 de maio de 1979, no início do governo do general João Figueiredo. Documentos guardados no Arquivo do Senado, em Brasília, mostram que os parlamentares receberam Eunice com empolgação. Na cerimônia de posse, a novata foi presenteada com flor, chocolate e até poesia.
“Que Vossa Excelência seja muito feliz e possa aqui emprestar, com sua inteligência, sua sensibilidade, seu coração e sua beleza, a colaboração de que o Senado tanto necessita. A sua presença aqui é, para nós, motivo de enternecimento”, disse o senador Lomanto Júnior (Arena-BA), durante a cerimônia.
No entanto, assim como a posse, o mandato de Eunice foi marcado por episódios de machismo praticados pelos próprios colegas senadores.
“Não deixou de ser uma discriminação, pois nunca receberiam um homem da mesma forma […] Os senadores me receberam como uma dama, não como alguém que chegava para trabalhar com eles de igual para igual”.
Mas o preconceito dos demais colegas não impediu Eunice de fazer história no Senado. A maior parte dos projetos de lei que ela apresentou buscava dar direitos às mulheres. Uma de suas primeiras propostas eliminava do Código Civil de 1916 o arcaico artigo que permitia ao homem anular o casamento e devolver a mulher aos pais caso descobrisse que ela não era virgem.
Eunice também apresentou um projeto de lei que acabava com a possibilidade de o homem casado em comunhão de bens contratar empréstimos e dar o patrimônio da família como garantia sem o consentimento da mulher.
“Não podemos mais aceitar no direito de família que apenas o marido seja o cabeça do casal. A mulher não pode ser obrigada a assumir uma dívida que ela não contraiu e cujos reflexos vão encontrar a família como a mais prejudicada”, disse à época.
No entanto, a ideia de aproximar os direitos das mulheres dos direitos dos homens foi mal recebida pelos demais senadores e Eunice não conseguiu aprovar nenhum dos seus projetos. Além disso, a senadora também foi alvo de outros episódios hostis e até de assédio moral.
Segundo a Agência Senado, uma vez um senador governista repreendeu Eunice em tom ríspido diante de todo o Plenário. Ele estava irritado porque ela e outros dois parlamentares não haviam chegado a tempo para uma votação e, sem o voto deles, o governo não conseguiu aprovar um projeto de lei importante. Embora os atrasados tivessem sido três, o senador só descontou sua raiva na colega mulher.
Eunice se atrasou para a votação porque estava no cabelereiro. Jornais, revistas e TVs viviam fazendo reportagens sobre a aparência da primeira senadora. Por essa razão, ela se sentia pressionada a estar sempre impecável e ia ao salão de beleza dia sim, dia não. Era um tipo de pressão que os senadores homens jamais sentiram ou jamais sentirão.
*g1 Amazonas