A vida e as políticas da ex-primeira-ministra Sheikh Hasina foram definidas por um trauma antigo, pessoal em seu sofrimento e nacional em seu registro.
Em 1975, o pai dela, Sheikh Mujibur Rahman, líder carismático que fundou Bangladesh, e boa parte da família foram massacrados em um golpe militar. Na época ela estava no exterior, e foi forçada a se exilar na Índia.
Sua volta tempos depois e a ascensão ao cargo de premiê representavam a esperança do país em um futuro melhor, mais democrático. Foi aclamada como muçulmana secular que tentou controlar um Exército com queda para o golpe, peitou a militância islâmica e reformou a economia de seu país empobrecido. Com o tempo, porém, foi mudando, ficando cada vez mais autoritária, reprimindo a dissidência e revelando uma atitude com a qual tratava o país como herança sua por direito. Então, em cinco de agosto, os anos de governo despótico finalmente cobraram seu preço, e Hasina voltou ao ponto onde havia começado: depois de renunciar sob a pressão intensa de um amplo movimento de protestos, ela fugiu e novamente se exilou no exterior.
Os manifestantes, liderados pelos estudantes revoltados com a violenta repressão que sofreram com o que começou como um movimento pacífico, invadiram a residência oficial e saquearam praticamente tudo que havia ali. Não satisfeitos, vandalizaram seus retratos, destruíram as estátuas de seu pai espalhadas pela cidade e atacaram a casa e o gabinete dos membros de seu partido.
A fuga de Hasina se deu meses depois da conquista do quarto mandato consecutivo de quatro anos, com a certeza de que sua posição de poder era inabalável. Para trás, ela deixa um país mergulhado no caos e na violência que marcaram sua fundação, na qual seu pai foi peça-chave.
Em seguida à alegria imediata dos manifestantes com sua saída, começaram a surgir várias questões preocupantes. Por enquanto, a nação de 170 milhões de habitantes parece não ter liderança; os órgãos de segurança pública que mataram pelo menos 300 manifestantes estão desprestigiados; é pouco provável que o partido de Hasina e a oposição deixem as diferenças de lado tão cedo, e muitos certamente pensam em vingança por anos de repressão excessiva. Há temores também de que o traço característico da sociedade bangladesa – o da militância islâmica – ressurja no vácuo político.
“Finalmente nos livramos de um regime autocrático. Já tivemos ditadores militares, mas a déspota civil foi mais dura do que qualquer um deles”, afirmou Shahdeen Malik, famoso advogado constitucional e ativista legal na capital, Daca.
Ele contou também que, durante o primeiro mandato, no fim dos anos 90, Hasina foi um verdadeiro sopro de ar fresco: com a política nacional até então marcada por golpes, contragolpes e assassinatos, ela chegou, democrática, e seu partido procurava agir com uma postura maior de responsabilização.
Instintos sombrios
Mas, quando voltou ao poder, em 2009 – depois de uma derrota eleitoral, exílio e um atentado contra sua vida que deixou mais de 20 mortos –, parecia movida por instintos mais sombrios, enxergando nos oponentes uma extensão das forças que lhe tinham causado o trauma duradouro.
A partir daí, embarcou na missão de moldar Bangladesh de acordo com a visão do pai, que antes de ser assassinado fora acusado de tentar transformar o país em um Estado unipartidário. Parecia enxergar tudo sob esse prisma e esse vocabulário, como se nunca tivesse superado a época tão antiga.
*R7/Foto: Atul Loke/The New York Times