A taxa de aprovação no último Revalida, feito no segundo semestre de 2022, foi de apenas 3,75% – é a menor em toda a história do exame, que começou a ser aplicado em 2011 para autorizar médicos formados no exterior a trabalhar no Brasil. Cerca de 96% dos candidatos que fizeram as provas foram reprovados na primeira ou na segunda etapa e, com isso, não conseguiram revalidar os diplomas.
Médicos brasileiros que se formaram em universidades estrangeiras e que fizeram o Revalida recentemente reclamam de aumento indevido na nota de corte (pontuação mínima para o candidato ser aprovado), de inconsistências no conteúdo das provas e de falta de coerência na hora da correção.
Sem o Revalida, brasileiros ou estrangeiros formados em medicina em outros países não podem solicitar o registro nos conselhos de medicina do Brasil. O chamado ‘CRM’ autoriza o médico a trabalhar no país.
No Revalida 2022/2, mais de 7 mil candidatos estiveram presentes na primeira etapa, composta por questões objetivas e discursivas. Desses, apenas 863 passaram para a segunda etapa, que é a parte prática. Ao final, apenas 263 conseguiram passar no exame (entenda abaixo como são as provas).
Os resultados foram divulgados na semana passada pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), que coordena o Revalida, após duas semanas de atraso.
Candidatos afirmam que as provas são “feitas para reprovar” e apontam um possível “boicote” aos formados no exterior. Muitos tiveram recursos negados pelo órgão e acionaram a Justiça para tentar reverter o resultado.
“Estamos presenciando erros de elaboração grotescos. E isso impossibilita que os candidatos alcancem a pontuação necessária para passar nas provas”, disse ao g1 o médico brasileiro Bryan Nasato, formado no Paraguai e morador de Quatro Barras (PR).
O que é o Revalida?
O Revalida foi criado em 2011 pelo Inep para centralizar o processo de validação de diplomas de medicina no Brasil – anteriormente, isso era feito diretamente em universidades públicas brasileiras, mas cada uma adotava métodos próprios, o que bagunçava o processo.
O médico formado no exterior precisa passar por duas etapas para conseguir revalidar o diploma junto a uma universidade pública brasileira:
- Na 1ª etapa, são 150 questões: 100 objetivas e 50 discursivas;
- A 2ª etapa vale 100 pontos e testa as habilidades clínicas do médico com exercícios práticos.
A prova prática é dividida por estações que simulam atendimentos no Sistema Único de Saúde (SUS) com a participação de atores. No total, são 10 estações, que abrangem cinco grandes áreas da medicina: clínica médica, medicina da família, pediatria, cirurgia e ginecologia e obstetrícia.
Em cada local, o médico tem 10 minutos para seguir uma lista de tarefas determinada e dar as respostas corretas sobre a saúde do “paciente”, indicando diagnóstico, tratamento e encaminhamento, por exemplo. A cada acerto, o médico ganha pontos, que são somados ao final.
Nessa etapa, o candidato não é avaliado no momento da prova: tudo é gravado em vídeo para posterior correção.
O médico que busca a revalidação do diploma precisa atingir a nota de corte em cada etapa. É a nota mínima para conseguir a aprovação, que é definida cerca de um mês antes da aplicação das provas (siga lendo a reportagem para entender melhor como a nota de corte é calculada).
Revalida: na prova prática, médicos precisam seguir uma lista de tarefas em cada estação; veja dois exemplos — Foto: Inep/Reprodução
Histórico de aprovações (e reprovações)
Até agora, foram feitas 11 edições do Revalida, com mais de 65 mil inscrições e 12 mil aprovações.
Na série histórica, as taxas de aprovação do Revalida variaram de 3,7% em 2022/2 até 33,2% no exame de 2021. Até então, a mais baixa era a da edição de 2017 (4,8%). O cálculo foi realizado com base no número de candidatos presentes na primeira etapa e o número de aprovados na segunda, a partir de dados públicos do Inep.
A procura pelo exame aumentou a partir de 2020.
❌ Um dos motivos foi uma paralisação no Revalida em 2018 e 2019 por conta de atrasos no andamento da edição de 2017. Desde 2022, são dois exames por ano, após mudança na legislação;
🥼 Outro foi um ‘boom’ de brasileiros que, nos últimos anos, optaram por estudar em outros países, principalmente da América Latina;
💰 Lá fora, os cursos de medicina chegam a ser até quatro vezes mais baratos do que em universidades particulares brasileiras, onde a mensalidade ultrapassa os R$ 10 mil;
🌎 Há também a questão geográfica: em localidades de fronteira, como Acre e Mato Grosso do Sul, às vezes é mais viável morar e estudar em outro país do que se deslocar aos grandes centros urbanos do próprio estado ou para outras regiões brasileira.
Não há dados oficiais que mostram a alta pela procura pela medicina no exterior. Mas, nas 11 edições do Revalida, mais da metade dos inscritos afirmou ser brasileiro.
- No Revalida do segundo semestre de 2022, dos 7.577 inscritos, 4.954 nasceram no Brasil.
- Sobre o país de origem do diploma, os top cinco da 2ª etapa do exame do ano passado foram: Bolívia, Cuba, Paraguai, Argentina e Venezuela – quatro fazem fronteira com o Brasil.
As polêmicas do Revalida
Médicos que tentam revalidar o diploma ou que já passaram pelo exame afirmaram ao g1 que o Revalida sempre foi considerado “difícil”, mas “problemático”. As reclamações sobre o formato e correção do exame cresceram entre os candidatos a partir de 2020.
Formado em medicina no campus da Universidad del Pacífico, localizado na cidade paraguaia de Pedro Juan Caballero, que faz fronteira seca com a brasileira Ponta Porã (MS), o médico Bryan Nasato reclama que, dos 100 pontos em jogo na última prova prática do Revalida, aplicada em dezembro de 2022, 40,35 apresentavam inconsistências.
Para os candidatos, os principais problemas foram:
- Erros de elaboração: no gabarito, constavam itens que não apareceram na ordem de tarefas no dia da prova;
- Erros de pontuação: o candidato cumpre a tarefa, mas não é pontuado;
- Falta de clareza: a prova não segue as orientações do Ministério da Saúde em relação a tratamentos e diagnósticos, por exemplo, e não deixa claro qual referência deve ser usada;
- Erros de correção: os candidatos verbalizam o que precisa ser dito, mas não ganham os pontos. Em alguns casos, houve problemas de áudio na gravação da prova;
- Mal preparação dos atores: segundo os revalidandos, os atores que participam dos atendimentos simulados têm acesso ao roteiro de falas horas antes da aplicação da prova, o que pode prejudicar os candidatos.
Comigo aconteceu isso: eu perguntei se o filho da paciente tinha tomado a vacina da influenza. Ela me respondeu que sim. E, com isso, eu não indiquei a vacina, porque a criança já tinha tomado. Só que ela deveria ter dito que não, porque o Inep cobrava no gabarito a indicação dessa vacina. Outras atrizes, na prova de outras pessoas, responderam que não. Acabei prejudicado.
— Médico Bryan Nasato, candidato do Revalida 2022/2
Situação parecida passou Davi Torres, formado em medicina na Universidade de Morón, na Argentina. Ele busca a revalidação do diploma após passar em primeiro lugar no concurso da Marinha do Brasil. Porém, não passou por 6,15 pontos, algo que considera injusto.
“Eu falei pedra na vesícula e na prévia do gabarito estava colelitiase. É a mesma coisa. E me tiraram pontos”, afirmou o médico, que tentará rever o resultado na Justiça para conseguir assumir a vaga.
O médico Carlos André de Castro Martins, formado na Universidad del Norte, no Paraguai, tenta revalidar o diploma de medicina desde 2017. Na prova do primeiro semestre do ano passado, conseguiu 3,25 pontos após recurso administrativo, mas foi reprovado por meio ponto.
Em uma das estações, Carlos disse ter indicado oxigênio com máscara para o paciente. Mas não verbalizou a palavra “oxigenioterapia”, que indica o procedimento. Com isso, perdeu 1 ponto.
“Há questões a qual eu creio que as respostas foram adequadas e não foram corrigidas através do recurso administrativo. Foi um erro grosseiro na correção da minha prova”, disse o médico.
O g1 questionou o Inep sobre os problemas no Revalida relatados pelos candidatos, mas não teve retorno.
➡ Há ainda reclamações de aumento indevido nas notas de corte: desde 2020, os candidatos precisam acertar mais de 60% das provas na primeira e na segunda etapa para passar no Revalida. Pelo método de cálculo estabelecido pelo Inep, a nota de corte é baseada no nível de dificuldade das questões: quanto mais difícil a prova, menor deve ser a nota de corte.
Segundo candidatos e professores de cursinhos, o exame está cada vez mais complexo, ao mesmo tempo em que a nota de corte aumenta. “Tudo caminha para a reprovação: começa com a nota de corte, passa pela prova mal elaborada até a correção inadequada”, lamentou o médico Bryan Nasato.
“É um fato que a prova está cada vez mais difícil. O nível de exigência tem crescido e isso faz com que os candidatos busquem uma preparação mais qualificada para fazer a prova”, avaliou a médica Thamyres Souza Areia, que passou no exame em 2022 e hoje dá aulas no cursinho Estratégia MED exclusivamente para candidatos do Revalida.
Na instituição, o número de alunos quase dobrou nos últimos anos: passou de 2,7 mil matriculados em 2021 para 5,1 mil no ano passado. Para 2023, a tendência também é de aumento na procura.
➡ O valor para fazer as provas também é objeto de reclamação: são duas taxas de inscrição, de acordo com a primeira e a segunda etapas. De 2017 para 2020, o valor para fazer a prova prática subiu 640%. Hoje, o candidato precisa desembolsar R$ 4.516,09 para fazer as duas provas.
O Revalida pode mudar?
O presidente do Inep, Manuel Palácios, levantou a possibilidade de fazer mudanças no Revalida durante uma reunião com médicos revalidandos, em março deste ano. Mas nenhum prazo foi dado.
O encontro foi mediado pelo senador acreano Alan Rick (União), autor da lei que permitiu que o exame fosse realizado duas vezes ao ano. Segundo o senador, Palácios foi “muito incisivo” na necessidade de rever o atual método de revalidação de diplomas de medicina estrangeiros.
“Fizemos um levantamento das questões que consideramos equivocadas na prova prática. Na soma, deu mais de 27 pontos de erros e equívocos nas questões e no gabarito”, afirmou o senador ao g1.
Uma das mudanças propostas ao governo federal é que a segunda etapa do Revalida seja feita dentro de um posto de saúde. O médico revalidando atenderia um paciente real – não um ator – sob a supervisão de um médico-tutor, que avaliaria se o candidato está apto para atuar no SUS brasileiro.
Para Alan Rick, a busca pelo diploma de medicina no exterior já é uma realidade entre brasileiros, principalmente pela questão financeira, mas também pela alta concorrência nas universidades públicas “O governo brasileiro não pode fechar os olhos para isso. A prova do Revalida precisa ser mais dinâmica e menos burocrática”, disse.
“Eu sou de um estado que, principalmente no interior, a média de médicos por mil habitantes é de 0,6, o que é baixíssimo e prejudica demais a população. Temos que aumentar esse provimento”, falou.
*G1