O caixão do presidente assassinado do Haiti, Jovenel Moïse, foi carregado por homens em uniforme militar a um palco central e coberto com uma bandeira haitiana nesta sexta-feira, 23. Espectadores colocaram buquês de flores brancas em volta do local, antes do início do funeral de Estado – momento que muitos esperavam que ajudasse a acalmar uma nação fragmentada.
Poucas horas antes, porém, a cidade de Cap-Haïtien – a 30 minutos da casa da família de Moïse, onde a cerimônia está sendo realizada – queimava de raiva e frustração, expondo as profundas divisões do Haiti e a desconfiança com a elite de Porto Príncipe no norte do país, menos desenvolvido.
Houve protestos e distúrbios na quarta e quinta-feira, quando manifestantes montaram bloqueios em estradas e exigiram responsabilização pela morte do presidente. A Associated Press informou que um homem parecia ter sido morto a tiros na quarta-feira em Quartier-Morin, uma comuna vizinha.
A primeira-dama Martine Moise, que sobreviveu ao ataque que matou o marido, participou da cerimônia, marcada por pedidos de justiça. Do lado de fora da residência onde ocorria o velório, houve protestos violentOs e confronto com a polícia.
Testemunhas disseram à agência de notícias que viram pneus em chamas e homens com armas exigindo justiça para Moïse em barricadas ao longo da estrada principal para Cap-Haïtien, a segunda maior cidade do Haiti. Também houve relatos de protestos furiosos quando o chefe da Polícia Nacional, Léon Charles, visitou a cidade no início do dia.
Duas semanas depois que Moïse foi morto em seu próprio quarto, nos arredores de Porto Príncipe, o país ainda está atordoado por perguntas sem respostas. As autoridades dizem que o assassinato foi cometido por um grupo de mercenários colombianos, e vários membros da equipe de segurança do próprio Moïse foram interrogados e levados sob custódia.
A morte foi um fim abrupto para a carreira política de um homem antes conhecido como “Neg Bannan nan” (“Homem da Banana”, em crioulo) por seu lugar na comunidade agrícola do norte do Haiti, onde trabalhou como exportador de banana antes de entrar para a política em 2015.
Moïse nasceu em Trou-du-Nord, a cerca de 27 km de Cap-Haïtien. Ele se formou em ciências políticas na Université Quisqueya em Porto Príncipe, onde conheceu sua esposa, Martine. Considerado um outsider na política, concorreu à presidência nas últimas eleições pelo partido de centro-direita haitiano Tèt Kale, mas só assumiu o cargo em 2017, após um processo eleitoral desafiador de 14 meses, marcado por violência e alegações de fraude.
Como presidente, ele foi criticado por muitos no Haiti e pela comunidade internacional por atrasar a convocação de novas eleições para permanecer no cargo.
Nas primeiras horas de 7 de julho, homens armados invadiram a casa de Moïse e o mataram a tiros. A polícia prendeu mais de 20 pessoas, incluindo dois haitiano-americanos e vários ex-soldados colombianos, mas o motivo exato do assassinato ainda não está claro.
O assassinato também gerou confusão sobre quem lideraria o Haiti em caso de morte de um presidente, com três políticos alegando que eram o líder legítimo. Na terça-feira, Ariel Henry foi empossado como o novo primeiro-ministro do país depois que o primeiro-ministro interino Claude Joseph concordou em se retirar, e um novo governo foi instalado na capital.
Contudo, as promessas de chegar à resolução do crime e construir consenso entre as facções políticas do país e seus grupos da sociedade civil está ameaçada de se transformar em um sonho ingênuo após as agitações antes do funeral.
“Mandamos alguém vivo, eles mandaram de volta um cadáver”, gritou Frantz Atole, mecânico de 42 anos, prometendo violência. “Este país não vai ficar em silêncio”. Outros gritaram que a polícia e a guarda presidencial, cujos membros não sofreram ferimentos durante o ataque à casa do presidente, foram cúmplices do assassinato.
O fato de ele ter sido morto em Porto Príncipe inflamou as velhas divisões entre o norte menos desenvolvido e a capital e o centro econômico do país. Também aprofundou as divergências entre a pequena elite do país e sua maioria indigente.
“Isso vem incessantemente em toda a história do Haiti”, disse Emile Eyma Jr., historiador radicado em Cap-Haïtien, falando sobre o ressentimento sentido pelos nortistas. “o que é perigoso é que tanto a questão da cor quanto a questão do regionalismo são armadas por razões puramente políticas.”
A viúva de presidente, Martine Moïse, voltou de surpresa ao Haiti no sábado, 17, depois de receber tratamento médico na Flórida devido aos ferimentos sofridos no ataque que matou seu marido.
Ela fez uma aparição pública na quarta-feira, 21, em um evento no Museu do Panteão Nacional em Porto Príncipe que homenageou seu marido. Vestida de preto e com o braço na tipoia, estava acompanhada de seus três filhos.
Em uma carta ao povo haitiano postada nas redes sociais, Martine Moïse agradeceu a simpatia e acrescentou que o funeral de sexta-feira seria pago pela família e não pelo tesouro público. “Seu apoio moral dá à família presidencial a coragem de passar por essa grande dor”, escreveu ela.
O funeral oficial de Jovenel Moïse será realizado no complexo de sua família nos arredores de Cap-Haïtien, uma cidade histórica que foi um dos centros do movimento revolucionário do Haiti há mais de 200 anos. A cidade vizinha de Milot serviu como uma das primeiras capitais do Haiti pós-revolução. (COM AGÊNCIAS INTERNACIONAIS)
*Estadão Conteúdo