Início Manaus Transtornos mentais afastam 6,6 mil trabalhadores da função em Manaus

Transtornos mentais afastam 6,6 mil trabalhadores da função em Manaus

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Em cinco anos, 6.655 trabalhadores foram afastados do trabalho em Manaus por doenças mentais como estresse grave, ansiedade e depressão, segundo o Observatório de Segurança e Saúde no Trabalho. Os mais afetados atuam no transporte público urbano de passageiros: foram 442 motoristas de ônibus (24,9%) e 394 cobradores (22,3%) afastados por transtornos psicológicos. Juntos, somam 836 casos, o equivalente a 47,2% de todos os registros na capital. Os dados são referentes entre 2020 e 2024.

As concessões de afastamento incluem tanto doenças ligadas ao ambiente profissional — como pressão constante, jornadas extensas e exposição a riscos — quanto casos sem nexo direto com a atividade. Em 2024, Manaus registrou 2.379 afastamentos por saúde mental, o maior número da série histórica.

O Observatório, em parceria com o MPT (Ministério Público do Trabalho) e a OIT (Organização Internacional do Trabalho, analisou dados do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) sobre os benefícios por incapacidade temporária concedidos no período.

Os afastamentos diretamente ligados às condições de trabalho (código B91) mantêm um padrão elevado na capital. Entre 2020 e 2024 foram 652 registros. O pico ocorreu em 2021 com 173 casos, seguido por 139 em 2022, 129 em 2023 e 133 em 2024. Mesmo após o pico em 2021, os números ainda são elevados ano após ano.

Conforme os dados, o setor que concentrou o maior número de afastamentos foi o transporte rodoviário de passageiros com itinerário fixo, com 228 casos (33,3%). Também se destacam os bancos múltiplos com carteira comercial, com 75 afastamentos (10,9%), e o atendimento hospitalar, com 45 registros (6,57%). Esses segmentos são conhecidos pela carga emocional intensa, metas rígidas e jornadas exaustivas.

Além de motoristas e cobradores, outras profissões também apresentam números significativos. Os agentes de segurança penitenciária somaram 128 afastamentos (7,24%), enquanto gerentes de contas tiveram 54 casos (3,05%). Essas funções envolvem alto grau de responsabilidade, risco e cobrança constante, fatores que contribuem para o adoecimento psicológico.

O impacto das rotinas laborais na saúde mental também aparece nos relatos de trabalhadores diagnosticados com problemas psicológicos. Aos 28 anos, uma editora de texto e repórter — que também atuava na direção de jornal — se afastou por 100 dias após ser diagnosticada com ansiedade generalizada e depressão moderada.

“Foram diversos fatores, não só profissionais, mas também da minha vida pessoal. No trabalho, o horário, afazeres que não eram da minha função, a falta de motivação e o salário foram os principais pontos”, conta.

Antes de procurar ajuda, ela relata que apresentava sintomas físicos e emocionais intensos como insônia severa, taquicardia, exaustão extrema e episódios de dermatite por ansiedade. “Todos os campos da minha vida foram afetados. E o falecimento da minha avó foi o estopim de tudo”.

Apesar do apoio limitado da empresa — apenas orientação para o INSS — ela retornou ao trabalho após o tratamento, ainda medicada, mas com melhora nos sintomas. “Está sendo um retorno relativamente tranquilo. Eu já queria voltar à rotina, rever os amigos e me ocupar com afazeres profissionais”.

Adoecimento mental no trabalho

O diagnóstico mais frequente foi o de reações ao estresse grave e transtornos de adaptação (CID F43), com 1.364 registros (65,8% do total). Em seguida aparecem os transtornos ansiosos (CID F41), com 383 afastamentos (18,5%), e os episódios depressivos (CID F32), com 180 casos (8,69%).

Esses dados evidenciam o impacto da instabilidade emocional nas rotinas laborais, diz a psicóloga Júlia Soutello. Segundo ela, o ambiente de trabalho passou por mudanças que têm contribuído diretamente para o adoecimento psicológico dos profissionais. Excesso de cobranças por produtividade, carga horária ampliada, uso constante de tecnologias e pressão por disponibilidade total, inclusive fora do expediente, estão entre os fatores mais nocivos.

“Trabalhos mais instáveis e precarizados, carga horária ampliada, uso constante de tecnologias, pressão por disponibilidade total (inclusive fora do expediente) e falta de reconhecimento têm contribuído significativamente para o aumento dos casos de adoecimento mental no trabalho. Além disso, ambientes mais competitivos e menos humanos dificultam a saúde emocional dos trabalhadores”, cita.

A psicóloga Érika Priscilla de Freitas Hounsell, especializada em terapia cognitivo-comportamental, psicologia hospitalar e segurança pública com ênfase em direitos humanos e família, acrescenta que metas inalcançáveis, sobrecarga, ausência de reconhecimento e falhas na comunicação também atuam como gatilhos para quadros de estresse, ansiedade e depressão.

Segundo ela, “a exposição frequente ao sofrimento psíquico pode gerar comportamentos ansiosos, síndrome de burnout, irritabilidade, uso abusivo de substâncias psicoativas, depressão, dentre outros”.

Ambas defendem que a prevenção deve começar com ações institucionais. Políticas claras de combate ao assédio, aproximação dos gestores das equipes, criação de espaços de escuta, canais anônimos de denúncia e programas de apoio psicológico são caminhos possíveis. Érika também destaca a importância de flexibilizar jornadas e incentivar o home office parcial, quando viável, além de avaliar periodicamente o clima organizacional.

Assédio moral e da cobrança excessiva

O assédio moral e a cobrança por resultados aparecem como elementos centrais no adoecimento mental de trabalhadores. Júlia explica que humilhações, críticas constantes, isolamento e desvalorização são formas recorrentes de violência psicológica no ambiente corporativo, capazes de gerar insegurança, baixa autoestima, ansiedade e depressão. “O assédio moral pode evoluir para quadros de estresse intenso e transtornos mentais mais graves”, afirma.

Érika reforça que a pressão constante por produtividade contribui para um quadro de exaustão física e mental, somado a transtornos de ansiedade, fobias sociais, distúrbios do sono e sintomas psicossomáticos. Além do sofrimento emocional, esse cenário provoca distanciamento social e prejuízos na autoestima, o que se reflete tanto no trabalho quanto na vida pessoal.

Entre os sinais mais comuns de esgotamento associados ao ambiente profissional, Júlia cita cansaço extremo, irritabilidade, dificuldades de concentração, insônia, desmotivação e dores físicas persistentes. Esses sintomas, segundo ela, muitas vezes passam despercebidos até que o quadro se agrave.

Ano passado o estado teve 2.727 concessões de afastamento por transtornos mentais e comportamentais, segundo dados do INSS. O estado ocupa a 22ª posição no ranking nacional, liderado por São Paulo (133.184), Minas Gerais (70.416) e Rio Grande do Sul (39.350). O Brasil contabilizou 472.328 afastamentos por transtornos mentais em 2024.

Desafios da saúde mental

no Polo Industrial de Manaus, onde prevalecem turnos longos, barulho, calor e ritmos repetitivos, os impactos sobre a saúde mental são ainda mais intensos. Érika afirma que a fadiga mental e física é agravada por longos deslocamentos, metas rígidas e a ausência de espaços de escuta ativa. “A rotina exaustiva reduz o tempo para lazer e convivência familiar, aumentando o risco de adoecimento”, observa.

Segundo Júlia, profissionais da indústria, da saúde, da segurança e da educação estão entre os mais vulneráveis. Jornadas longas, alta carga emocional, pressão constante e pouca valorização contribuem para o desgaste psicológico, especialmente em ambientes considerados tóxicos.

Ela alerta para o desequilíbrio entre trabalho e vida pessoal como fator de risco crescente. A dificuldade de estabelecer limites, somada ao sentimento de culpa por “não dar conta de tudo”, tem levado muitos trabalhadores ao isolamento, à perda de vínculos afetivos e ao aumento de comportamentos compulsivos, como o uso de álcool ou drogas.

Valdemir Santana, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do Amazonas, diz que há três anos foi incluída na convenção coletiva a exigência de que empresas com mais de 10 funcionários disponham de serviço social e psicológico. Ele explica que a jornada de trabalho, somada ao tempo de deslocamento — cerca de 13 horas diárias de disponibilidade — compromete o descanso e agrava os problemas de saúde mental.

“Ainda existe assédio moral dentro da fábrica, e a responsabilidade sobre o trabalhador aumentou muito. Hoje, um operador é responsável por controlar qualidade, produção e outras funções que antes eram de setores específicos”, explica.

Segundo ele, o sindicato atua no atendimento a casos de assédio moral com advogados e médicos especializados. O principal pleito atual é a redução da jornada diária de nove para seis horas para evitar o adoecimento físico e mental.

Ambiente inadequado

As condições físicas e organizacionais do ambiente de trabalho estão entre os principais gatilhos para o adoecimento mental de motoristas e cobradores. A avaliação é de Deborah de Souza Gadelha, especialista em Saúde, Segurança e Ergonomia, com atuação em psicologia organizacional e fatores psicossociais. Sócia da WDG Consultoria, a empresa atende há sete anos o setor de transporte coletivo, e coordena a área de saúde e ergonomia da Via Verde Transportes Coletivos, em Manaus.

Ela explicou à reportagem que, além das exigências físicas, há também pressões relacionadas à produtividade, metas e controle do tempo, o que sobrecarrega os trabalhadores tanto física quanto emocionalmente.

Deborah chama atenção para um ponto muitas vezes negligenciado: a estrutura do transporte coletivo. Segundo ela, “os espaços restritos, o mobiliário inadequado e a exposição a eventos traumáticos, como assaltos ou conflitos com passageiros, potencializam o desgaste psicológico, especialmente quando não há suporte institucional”.

Outro aspecto abordado pela especialista é o papel da gestão no agravamento dos casos. A ausência de escuta ativa, a negligência diante de queixas e a falta de políticas de prevenção e acolhimento tendem a tornar o adoecimento ainda mais invisível. “Infelizmente, muitos profissionais só são atendidos quando já estão em processo de adoecimento instalado ou em crise, sem qualquer prevenção anterior”, afirma.

Deborah defende que a atuação das empresas precisa ir além do cumprimento formal de normas. Para ela, é fundamental um olhar mais humanizado sobre os fatores psicossociais do trabalho e suas consequências, com ações reais de escuta, acolhimento e reestruturação do ambiente laboral.

A realidade descrita pela especialista é sentida no dia a dia por profissionais como Luan Lima, de 35 anos, motorista de ônibus há 11 anos. Ele afirma que sua rotina afeta diretamente a saúde emocional e mental.

“A mente fica cansada o tempo todo”, resume. O trânsito congestionado é apontado como a principal fonte de estresse. Luan já pensou em se afastar do trabalho por conta disso, mas afirma que a empresa não oferece nenhum tipo de apoio psicológico. Para ele, a carga horária excessiva é um dos pontos que mais pesam na saúde mental da categoria.

O presidente do Sindicato dos Rodoviários, Givancir Oliveira, diz que motoristas e cobradores enfrentam uma rotina de estresse agravada por trânsito intenso, violência e falta de respeito dos passageiros. “O passageiro, às vezes está com problemas pessoais, desconta no trabalhador. Soma-se o trânsito caótico, assaltos e a pressão das empresas. Tudo isso impacta a saúde mental dos rodoviários”, afirma.

Para Givancir, medidas como fiscalização mais rigorosa das condições de trabalho e reforço da segurança pública nos coletivos são fundamentais para reduzir o adoecimento. Ele destaca que, apesar de os trabalhadores terem plano de saúde, o sindicato oferece apoio psicológico a quem procura o serviço e defende atuação direta do Ministério Público do Trabalho para coibir assédio moral nas empresas.

Fonte: Amazonas Atual/Foto: Bruno Zanardo/Secom

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