Sete meses após a queda do avião da Voepass, a viúva do copiloto Humberto de Campos Alencar e Silva quer terminar o túmulo do marido. Depois do acidente que deixou 62 mortes em Vinhedo (SP), Rosana Maria Ferreira e o filho Bernardo, de 11 anos, tentam se reerguer em meio a luto, dor, saudade e dificuldades financeiras que surgiram com a partida de Humberto e fizeram com que ele ainda não tenha um jazigo à altura do que a família queria dar.
Semanas antes da queda, Humberto de Campos Alencar desabafou com um colega sobre as condições das aeronaves da Voepass. Em mensagens reveladas com exclusividade pelo Fantástico, o profissional disse que a situação na aviação estava “complicada”.
Durante a conversa de 30 minutos por chamada de vídeo, a esposa de Humberto Alencar ainda detalhou o processo de luto e as transformações que passou junto com o filho para conduzir uma vida sem o “marido, confidente, melhor amigo”, e pai, além de Bernardo, de três filhos de outro relacionamento.
Em readaptação da estrutura financeira – considerando que a renda familiar vinha apenas do piloto desde 2022 – ela precisou mudar de cidade: foi de Jandira (SP), na Grande São Paulo, para Peruíbe (SP), na Baixada Santista, porque considerou o custo de vida mais barato e para buscar uma rede de apoio, já que um dos irmãos de Humberto mora na cidade.
Ela conseguiu com a Voepass o custeio do plano de saúde, por ser parente de funcionário, e também do atendimento psicológico, este uma realidade comum às famílias das 62 vítimas da maior tragédia da aviação brasileira em 17 anos. A companhia aérea teve, no dia 11 de março, as operações suspensas pela Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) por falta de segurança.
‘Me senti humilhada’
O copiloto Humberto de Campos Alencar e Silva morreu aos 61 anos na queda do avião da Voepass em Vinhedo, no dia 9 de agosto de 2024. A partir disso, Rosana passou a receber uma pensão por morte de R$ 2,9 mil para ela e o filho, além de dois seguros, um deles de vida, que precisou ser dividido entre todos os herdeiros.
Para se manter e pagar todas as despesas, ela conta com a pensão mensal e precisa ainda tira um valor que recebeu dos seguros para completar a renda. A mudança de cenário fez com que Rosana não conseguisse custear a finalização do túmulo e, com o respaldo da advogada, fizesse o pedido à Voepass.
“Eu fiz o contato com a empresa, através da minha advogada, e nós tivemos duas negativas. Eles sugeriram que nós colocássemos esse valor de orçamento num futuro pedido de indenização. Eu me senti muito humilhada, porque o meu marido sempre foi um funcionário exemplar. Ele não merece ser tratado com tanto descaso. O Humberto nunca falou mal da empresa e nunca se negou a fazer nenhum voo”, afirmou.
Rosana disse que um de seus enteados, que é arquiteto, fez o projeto para concluir o túmulo do pai e, segundo ela, o orçamento repassado à empresa aérea foi de R$ 7 a R$ 8 mil. Agora, com as negativas, a viúva começou a fazer um rateio entre ela, os filhos e o pai de Humberto para que a sepultura seja finalizada o quanto antes. No entanto, ela ainda não desistiu de conseguir com a Voepass.
O que diz o Código Civil? A lei 948 do Código Civil Brasileiro regula indenizações por danos patrimoniais causados por homicídio ou acidentes de trabalho. Entretanto, não há especificações sobre o custeio do túmulo.
Independentemente do texto da lei, Rosana afirmou que fez o pedido à empresa para uma “consideração da companhia com o funcionário”.
‘É muito dolorido falar do luto’
A partida de Humberto deixou em Rosana um enorme buraco. O luto e a tristeza ainda se fazem muito presentes, tanto para ela quanto para o filho, o que tornou os meses seguintes à queda do avião difíceis para a família.
“Falar do luto é dolorido, porque não diminui a dor. E eu ainda não sei conviver com a ausência do Humberto. Eu sinto o cheiro do meu marido, às vezes eu sinto a presença do meu marido. O Bernardo mal fala do assunto, porque é algo que machuca muito. A gente faz terapia. Só eu sei o quanto o meu filho está sofrendo a ausência do pai”, afirma.
“A gente sempre reza muito, então, todas as vezes que a gente vai à missa o Bernardo chora, porque é onde ele sente mais a presença do pai. Ele fala assim: mamãe, eu olho para o lado e o meu pai não está ali. E eu ainda tenho que tirar forças para poder lidar com o meu luto, com o luto do meu filho, e ainda passar por todas essas chateações financeiras”, completou.
A mudança de cidade, apesar de ter provocado um acolhimento, considerando que Bernardo é muito apegado aos primos que moram em Peruíbe, também dificultou o processo do luto porque o garoto, além de ter perdido o pai, deixou a escola que sempre estudou e o ciclo de amigos. Mesmo com as dificuldades financeiras, ela manteve o pagamento de uma instituição particular.
“Não tem a mínima condição de ficar sem fazer terapia, porque foi uma mudança radical em nossas vidas. Da manhã para a tarde, eu fiquei sem o meu marido, eu fiquei sem o meu melhor amigo, meu confidente, provedor da minha casa, o pai do meu filho. Aí eu tive que sair da nossa casa, sair do colégio que ele estava já há mais de cinco anos. Saímos do local onde ele nasceu e viveu por 11 anos”, revelou Rosana, que chegou a se formar comissária para ficar perto do marido, mas deixou a profissão depois que o filho nasceu.
À espera das indenizações, em contato com a Polícia Federal e a Força Aérea Brasileira (FAB), que investigam o acidente aéreo, e na luta para superar a perda do marido, Rosana segue em frente com a esperança de que o tempo cicatrize um pouco as dores. “Tem uma frase que eu sempre falo, que eu vou ter que tatuar em mim: Deus dá o que a gente precisa e não o que a gente quer”, disse.
O que diz a Voepass
Em nota, a empresa disse que todas as obrigações estão sendo cumpridas e está em prioridade para assistir e acompanhar as famílias das vítimas. Veja na íntegra:
“A VOEPASS Linhas Aéreas informa que todas as obrigações legais estão sendo cumpridas e que sempre esteve e está em sua prioridade assistir, acompanhar e apoiar da melhor forma possível as famílias desde o acidente.
A companhia reforça que segue prestando suporte, incluindo o apoio psicológico que é tratado diretamente com cada família.”
Áudio resgatado de celular
Mensagens obtidas com exclusividade pelo Fantástico revelaram textos e áudios que estavam no celular de Humberto e foram recuperados com ajuda de Rosana. De acordo com as informações, semanas antes da queda, ele desabafou com um colega.
“Essa aviação está complicada, meu caro, com esses aviões fadigados. Não adianta, rapaz, não adianta. Tem que rezar para esse pessoal fazer o possível, né? Para modernizar essa frota. Porque é complicado, né, meu irmão?”, afirmou Humberto em uma mensagem de áudio.
Na ocasião, a Voepass disse que a reutilização dos componentes entre aviões é legal quando há certificação e rastreabilidade adequadas.
Operações suspensas
Desde o acidente, foi implantada uma operação para fiscalizar as instalações da empresa. Segundo a Anac, a Voepass não conseguiu “solucionar irregularidades identificadas”.
Além disso, não foram atendidas exigências como a redução da malha aérea e aumento do tempo das aeronaves no solo para manutenção. A agência afirmou ainda que irregularidades que já haviam sido consideradas sanadas voltaram a ocorrer.
A Voepass disse ainda que “iniciou as tratativas internas para demonstrar, conforme solicitado, sua capacidade de garantir os níveis de segurança exigidos pela agência reguladora”.
Cronologia da queda
O relatório preliminar do Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (Cenipa), divulgado no dia 6 de setembro do ano passado, trouxe informações relevantes sobre o acidente em Vinhedo.
Uma dessas informações foi de que a tripulação relatou uma falha no sistema antigelo. O relatório, contudo, não conseguiu confirmar, com base nos dados da caixa-preta, se isso de fato aconteceu e impactou o desempenho da aeronave.
Veja, abaixo, a cronologia da queda:
- O ATR 72-500 decolou às 11h56 e o voo seguiu tranquilo até 13h20.
- O avião subiu até atingir 5 mil metros de altitude às 12h23, e seguiu nessa altura até as 13h21, quando começou a perder altitude, segundo a plataforma Flightradar.
- Nesse momento, a aeronave fez uma curva brusca.
- De acordo com a Força Aérea Brasileira (FAB), a partir das 13h21 a aeronave não respondeu às chamadas do Controle de Aproximação de São Paulo, bem como não declarou emergência ou reportou estar sob condições meteorológicas adversas.
- Às 13h22 – um minuto depois do horário do último registro – a altitude estava em 1.250 metros, uma queda de aproximadamente 4 mil metros.
- A velocidade desta queda foi de 440 km/h.
- O Departamento de Controle do Espaço Aéreo (DECEA) informou que o “Salvaero” foi acionado às 13h26 e encontrou a aeronave acidentada dentro de um condomínio.
Fonte: G1/Foto: Arquivo pessoal