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100 anos atrás, jiu-jítsu brasileiro era criado na zona sul carioca em campeonatos de vale-tudo; relembre

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“O jiu-jítsu talvez seja o maior produto de exportação cultural do Brasil”, arrisca o historiador estadunidense Robert Drysdale, 43, professor e ex-lutador de artes marciais mistas, o MMA. Desde o seu surgimento, a versão “made in Brazil” do esporte virou base fundadora do popular Ultimate Fighting Championship (UFC) e foi adotada por celebridades, a exemplo do ator Tom Hardy e do falecido chef Anthony Bourdain, além de Mark Zuckerberg, o poderoso CEO da Meta.

Ao se tornar internacional, explica Drysdale, o jiu-jítsu brasileiro exportou a irreverência, o companheirismo e a marra que o caracterizam como produto da Zona Sul do Rio de Janeiro. Em outubro, membros da família Gracie, pilar da prática no país, celebram o centenário do modelo desenvolvido e difundido pelo clã – que começou a organizar aulas em 1925 e abriu sua primeira academia na década de 1930, no Flamengo – em um evento no Hotel Windsor, no Rio.

Há ao menos duas versões sobre o início do esporte por aqui: a primeira conta que, por volta de 1916, durante o tempo em que residiu no Brasil, o judoca japonês Mitsuyo Maeda teria ensinado técnicas de luta a Carlos Gracie. Sua família, que cinco anos depois se mudaria para o Rio, ainda morava em Belém do Pará.

A segunda afirma que Carlos teria aprendido a arte com um dos discípulos de Maeda, o paraense Jacyntho Samphaio Ferro. Seja como for, o que judocas têm a ver com jiujiteiros? Os brasileiros “praticavam o judô da época, que também era conhecido como jiu-jítsu”, explica Drysdale.

A evolução das diferenças entre as artes marciais é importante para entender o jiu-jítsu brasileiro, afirma o autor de A Ascensão e Evolução do Jiu-jitsu Brasileiro (2023) e Abrindo Closed Guard: As Origens do Jiu-jitsu no Brasil (2025). Quando Carlos Gracie migrou para o Rio, levou consigo o que aprendeu no Pará e a necessidade de se provar em uma cidade na qual havia grande interesse por capoeira, savate e catch wrestling.

“Existia um mundo de luta bem dinâmico por lá nos anos 30 e 40. A família brigou para se tornar expressiva”, pontua Drysdale. “E conseguiu; um baita ato de vontade.” Em 1938, a revista “O Globo Sportivo” já cravava: “Não se pode falar do jiu-jítsu sem se recordar dos Gracie”.

Parte do apelo da versão do clã era o enfoque em defesa pessoal, reforçado por meio de torneios informais que viriam a ser conhecidos como Vale-Tudo, em que praticantes de lutas diversas se enfrentavam. As vitórias de Carlos e seu irmão, Hélio Gracie, nessas arenas indicaram aos cariocas que, se quisessem se proteger, era bom negócio virar jiujiteiro, mensagem que chegou a atrair alunos como Oscar Niemeyer Roberto Marinho.

Mesmo hoje, com a presença em arenas, rounds contados e classificações de peso, a filosofia da defesa pessoal ainda é defendida por alguns praticantes. Em São Paulo, a Cia. Paulista de Jiu-jitsu, fundada em 1988, traz em seu currículo não só o preparo de atletas de MMA, como o americano Quinton Jackson, mas também o treinamento de equipes de segurança, a exemplo da guarda presidencial de Abu Dhabi, nos Emirados Árabes.

“Nossa equipe fica bem focada na retenção e na contrarretenção de armas de fogo e lâminas”, diz o mestre Eduardo de Sá Leitão, 56, dedicado à arte marcial desde 1975 e discípulo de Waldomiro Perez Jr., fundador da equipe. “Nas aulas infantis, desenvolvemos um sistema anti-bullying para as crianças controlarem situações agressivas e saberem que têm capacidade de defesa. Com alunos mais velhos, realizamos um protocolo chamado FBI, contra agressores ativos.”

Assista a uma aula na unidade da Cia. Paulista na Vila Olímpia (há outras espalhadas por São Paulo, pelos Estados Unidos e pela Austrália) e verá uma nova geração no tatame. Jovens que se dedicam a manobras como imobilizações e chaves de braço e perna, realizadas muitas vezes em dezenas de passos: agarre a manga do quimono, passe a perna ou o braço, puxe, empurre… A meta não é ferir, mas parar o atacante. Chutes e socos são proibidos, por exemplo.

O clima inspira respeito e ordem, mas também camaradagem. “O conflito é inerente à sobrevivência animal, mas a luta se difere da briga. O objetivo aqui é a não violência”, analisa o empresário Carlos Johann Peter, 65, enquanto assiste a dois de seus filhos, de 10 e 14 anos, em simulações de combate, as chamadas “rolas”.

A Cia. Paulista se estabeleceu na época em que o jiu-jítsu brasileiro expandia seu território. Em 1976, o paraense Orlando Saraiva, aluno dos Gracie, e o paulistano Octávio de Almeida, que treinara com imigrantes japoneses, organizaram o primeiro campeonato da modalidade em São Paulo, espalhando a prática pela capital e pelo interior do estado.

Em 1989, os Gracie, por meio de Rorion (um dos filhos de Hélio), inauguraram sua primeira academia estrangeira, na Califórnia. Drysdale conta que, com o nome “Gracie Jiu-jítsu” patenteado nos EUA, instrutores que tentavam a sorte no país adotaram o termo “jiu-jítsu brasileiro” para não fazer menção ao clã pioneiro.

Quero resgatar e preservar a essência ensinada por Carlos Gracie, na qual não importa só a técnica, mas também a postura e a conduta.”
— Kyra Gracie, quarta geração da família Gracie

Em dezembro de 1993, Rorion e o empresário californiano Art Davie organizaram em Denver, no Colorado, o primeiro evento do torneio UFC, que alcançaria audiências enormes com o passar dos anos. Em junho passado, 32 anos depois, a organização do UFC estreou uma nova atração ao vivo baseada estritamente no jiu-jítsu brasileiro, o UFC BJJ, em sua terceira edição.

Outro exemplo da globalização do esporte, o professor e palestrante carioca Pedro Valente, 50, pupilo direto de Hélio Gracie, fundou, ao lado dos irmãos Guilherme e Joaquim, a academia Valente Brothers, em Miami, em 1993. Ele destaca outra característica de raiz da versão nacional do jiu-jítsu: além da autodefesa, a intenção de incorporar um sistema filosófico.

No início da história da modalidade no Rio, houve resistência dos praticantes em adotar a cultura oriental do judô. “Há aquela reverência. Abaixam a cabeça, ajoelham-se no começo e no final da aula”, diz. “O contato entre os alunos aqui era mais abrasileirado.” Parte do atrativo estava em não precisar virar outra pessoa ao pisar no tatame. Surgiu, assim, outro racha com o esporte japonês. Porém, havia ordem, pois os Gracie defendiam seu próprio sistema moral.

Nos anos 40, Carlos escreveu sua Introdução ao Jiu-jítsu, não como um manual prático, mas como um ensaio sobre a importância da autoconfiança, a ser obtida por meio da luta. A família destacava primeiramente a coragem. “Em segundo, a prestimosidade; e em terceiro, a tolerância. A coragem era o principal, mas você não podia ficar muito duro, porque daí se tornava machão. Precisava se mostrar uma pessoa prestimosa, ou prestativa, e tolerante, entendendo as diferenças”, resume Valente. E adiciona: “Essa coisa da cultura carioca foi uma faca de dois gumes”, acredita. “Nos anos 90, houve uma fase muito sombria: lutadores indo a boates arrumar confusão. Quando o jiu-jítsu se afasta de sua filosofia, vira uma bomba-relógio.”

Quarta geração da família, Kyra Gracie, 40, cultivava grandes ambições quando começou a competir, na década de 1990. “Meu sonho era ser faixa-preta, virar campeã mundial.” Começou aos 11 anos, como a primeira mulher Gracie a participar de torneios. Hoje, com oito títulos mundiais, ainda é a única. “As mulheres não eram incentivadas a seguir nessa carreira”, lembra.

Além da situação machista, ela cresceu em outro contexto: após os anos 70, em grande parte por influência de Carlson Gracie Jr. (filho de Carlos), houve um esforço em formalizar a prática como um esporte, divorciado da filosofia. “Aprendi esse jiu-jítsu de competição. Fui atleta a minha vida inteira porque não me ofereceram esse outro lado”, lamenta Kyra.

Com a aposentadoria em 2014, ela se viu entre o distanciamento da modalidade e a necessidade de encontrar sentido em sua jornada. “Eu ganhava no tatame, mas na vida não. Não tinha voz”, diz. “Quando me tornei mãe, percebi que precisava passar adiante às minhas filhas o que fiz a vida inteira.” A resposta para o dilema se deu no contato com os irmãos Valente, conectados à velha-guarda. Em sua primeira aula com Pedro, ela se lembra da surpresa: “Eu, campeã mundial, não sabia me defender de um tapa no rosto”.

Kyra gere, desde 2018, a academia Gracie Kore ao lado do marido e sócio, o ator Malvino Salvador, além de um programa de formação de professores em Vargem Grande, no Rio. Também ensina princípios de autodefesa em suas redes sociais. “Quero resgatar e preservar a essência ensinada por Carlos Gracie, na qual não importa só a técnica, mas também a postura e a conduta.”

Se, por um lado, brasileiros têm se inspirado no que se disseminou nos anos 30 para levar o esporte adiante, Drysdale enxerga outro movimento nos Estados Unidos: “Meus alunos não querem mais falar de quimono. As aulas sem quimono, do tipo no-gi, ficaram mais populares por aqui”, explica (a lapela, as mangas e a faixa do traje são fundamentais para as técnicas tradicionais). “Trata-se de um distanciamento entre o jiu-jítsu brasileiro e o americano. Estamos acompanhando um novo racha.”

Fonte: GQ/Foto: Biblioteca Nacional

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