Sob Bolsonaro, número de multas pagas por crimes ambientais na Amazônia cai 93%

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Os entraves à fiscalização ambiental da Amazônia na gestão Jair Bolsonaro alcançam não só quem monitora infrações no campo, como aqueles que estão nos gabinetes de órgãos federais, julgando esses processos. Em 2019 e 2020, a média de processos com multas pagas por crimes que envolvem a vegetação nos Estados da Amazônia Legal despencou 93% na comparação com a média dos quatro anos anteriores. A centralização de decisões e a burocratização de processos ajudam a explicar o mau desempenho.

O dado faz parte de levantamento do Centro de Sensoriamento Remoto e do Laboratório de Gestão de Serviços Ambientais da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Os pesquisadores mostram que mudanças em regras internas do Ministério do Meio Ambiente e na legislação entre 2019 e 2020 dificultaram o trabalho de campo dos fiscais e o andamento interno de processos ligados à apuração de infrações ambientais, como desmate e extração de madeira irregulares.

Desde 2019, Bolsonaro tem sido alvo de críticas no Brasil e no exterior diante da explosão de queimadas e do desmatamento na Amazônia. Para combater crimes ambientais, o governo aposta em operações militares – as Forças Armadas, porém, não aplicam sanções a quem desmata ou faz queimadas irregulares. Apesar das tropas, a devastação da floresta segue alta, com a maior taxa em 12 anos.

Segundo o estudo da UFMG, a média anual era de 688 processos com multas pagas entre 2014 e 2018 no Ibama, autarquia ligada ao ministério. Em 2019 e 2020, sob o comando do ex-ministro Ricardo Salles, os balanços foram 74 e 13 multas pagas (média de 44). Desde que assumiu, Bolsonaro tem declarado seu propósito de parar a “indústria da multa” e se posicionou contra medidas de fiscais.

O número de processos relacionados a infrações que envolvem a vegetação julgados em 1ª e 2ª instância também recuou: de 5,3 mil anuais entre 2014 e 2018 para somente 113 julgamentos em 2019 e 17 no ano passado. Os dados foram obtidos pelos pesquisadores via Lei de Acesso à Informação. O grupo diz que pedidos chegaram a ser negados e, depois houve envio de dados. Para especialistas, eventuais defasagens de registros são pequenas e não mudam o cenário. Procurado pelo Estadão desde segunda-feira, o ministério não se manifestou.

Para o biólogo da UFMG Felipe Nunes, um dos autores do estudo, o risco da ausência de responsabilização por crimes ambientais é a desmoralização institucional e sensação maior de impunidade. Essa responsabilização começa com o fiscal em campo, que expede autos de infração quando vê irregularidades. Mas, para a punição valer, é preciso ter julgamento do processo. Em 2019 e 2020, a queda de autos de infração, que já ocorria desde 2017, se acentuou.

Autos de infração são julgados administrativamente pelo Ibama ou Instituto Chico Mendes (ICMBio) em duas instâncias. Em alguns casos, saem da esfera administrativa para a judicial. Em 2019, um decreto obrigou Ibama e ICMBio (que cuida de áreas protegidas federais) a fazerem audiências de conciliação com os autuados. Antes dessa audiência, a multa não é cobrada nem passa por julgamento. Na prática, travou o andamento dos processos.

Não havia recursos – nem de pessoal nem tecnológico – para fazer audiências, que acabavam replicando informações já repassadas pelos fiscais. “Toda a explicação que o fiscal dava em campo, de que podia parcelar a multa, optar pela recuperação do dano, agora tem de ser feita também em audiência de conciliação”, diz Alex Lacerda, servidor do Ibama e diretor executivo da Associação Nacional dos Servidores da Carreira de Especialista em Meio Ambiente.

Ele, analista no Pará e ex-superintendente do Estado, vê risco de prescrição de milhares de processos. Hoje, na área em que trabalha, é feita uma audiência de conciliação por semana. Mas, para dar conta dos cerca de 1,8 mil autos de infração por ano, seria preciso ter 30 vezes mais audiências, diz o servidor.

Em maio, o Tribunal de Contas da União (TCU) já indicou paralisia na gestão de multas ambientais. Para especialistas, as restrições impostas pela pandemia não são a causa, já que é possível condução remota do processo. “Antes, (o autuado) recebia o auto e uma guia para pagar. Agora, o que recebe é comunicação para reunião que vai ocorrer meses depois. Então ninguém paga e espera a reunião”, diz Suely Araújo, especialista sênior em políticas públicas do Observatório do Clima e presidente do Ibama na gestão Michel Temer (2016-2018).

Historicamente é baixo o número de multas ambientais pagas, já que boa parte dos autuados prefere usar todos os recursos antes de admitir a infração – mas agora o cenário “piorou muito”, diz Suely. O intervalo entre o auto de infração e a audiência pode passar de dois anos. Há casos de autos de 2018, por exemplo, que só passaram por audiência de conciliação em maio deste ano.

Além disso, servidores do Ibama e do ICMBio dizem ser preciso remanejar equipes da fiscalização para participar de audiências. Mas é comum quem recebeu a multa não ir. “A conciliação, em teoria, é fantástica. Diz que vai evitar contratação de advogados, morosidade e que o Estado receberá mais rápido. Mas, na prática, não acham o infrator e não tem equipe nem tecnologia para fazer a quantidade de reuniões”, diz Nunes.

Já o advogado Francisco de Godoy Bueno reclama que havia falta de critérios na aplicação de multas. “Os autos estão sendo aplicados agora com melhor critério”, afirma ele, sócio do escritório Bueno, Mesquita e Advogados, voltado para empresas do agronegócio.

Julgamentos

A centralização crescente de decisões é outro ponto de alerta. Quando não há conciliação, é feito julgamento na 1.ª instância – função concentrada a partir deste ano nas mãos do superintendente estadual, independentemente do valor da multa. Antes, havia uma equipe em cada Estado, além do próprio superintendente, para avaliar. E multas mais elevadas eram julgadas na sede do Ibama. Nos últimos anos, as superintendências têm sido ocupadas por indicação política e boa parte são militares.

“Além de poder haver conflito de interesses, a maioria dos indicados não possui experiência ou conhecimento no assunto”, dizem os pesquisadores da UFMG. Bueno, por sua vez, acredita que a centralização dá uniformidade ao entendimento de vários setores do Ibama.

Já processos de 2.ª instância ficam todos com o presidente do Ibama – no último ano, só quatro foram julgados nesta esfera. Na sexta, o comando do órgão passou para Jonatas Trindade, servidor federal de carreira.

Antes, era ocupado pelo tenente-coronel da Polícia Militar de São Paulo, Luis Carlos Nagao. Quando Salles assumiu, nomeou Eduardo Bim, afastado do cargo em maio deste ano e incluído no inquérito que investiga Salles por supostas irregularidades na exportação de madeira. O Estadão também procurou o Ibama e o ICMBio, mas não obteve nenhuma resposta.

Impunidade

“O presidente disse que vocês não podem mais fazer isso”. É o que escutam com frequência fiscais do Ibama quando vão a campo fazer autuações, segundo Alex Lacerda, servidor do órgão. A fala às vezes vem acompanhada de vídeos de Jair Bolsonaro contra os trabalhos de fiscalização. Também é comum ouvir de proprietários de terra já autuados que os processos não andam, afirma. “Isso empodera o pessoal”, diz o agente, que atua no Pará, um dos Estados mais pressionados pelo desmate.

A baixa conversão dos crimes ambientais em multas efetivamente pagas cria uma sensação de impunidade e prejudica até os trabalhos de fiscalização. “Os sinais são muito importantes. Quando um líder fala mal do Ibama, fala em ‘indústria da multa’, passa um sinal péssimo para o campo de que pode invadir, desmatar, minerar”, afirma Suely Araújo, especialista sênior em políticas públicas do Observatório do Clima e ex-presidente do Ibama.

Uma servidora do ICMBio, que preferiu não se identificar, relatou ao Estadão haver uma percepção entre os infratores de que a fiscalização está paralisada. A sensação entre os colegas, de acordo com ela, é de medo. E a agressividade com os fiscais também aumentou.

Para Suely, um dos mecanismos para resolver o baixo pagamento de multas ambientais é a conversão das sanções em serviços ambientais. Outro ponto é descentralizar o poder dado a superintendentes nos julgamentos – em cada Estado, o superintendente é o único que pode julgar processos em 1ª instância. Hoje, há cerca de 99 mil processos de infração ambiental pendentes de julgamento no Ibama, em 1ª ou 2ª instâncias, diz o levantamento da UFMG.

Inédito

O estudo aponta ainda que houve redução nos embargos ambientais, de 2.589 em 2018 para 385 em 2020. Quando uma área é embargada, a produção obtida é considerada irregular, entra em uma lista compartilhada internacionalmente e não pode ser comercializada. Em 2020, pela primeira vez, o número de desembargos pelo Ibama foi superior ao de embargos.

Na Europa, autoridades e empresas têm apertado o cerco contra mercadorias brasileiras cuja cadeia de produção envolva desmatamento. Por aqui, exportadores pressionam o governo Bolsonaro para melhorar as políticas nesse setor e recuperar a reputação internacional.

Para os pesquisadores, a redução de embargos é preocupante, “pois indica a adoção de uma estratégia de fiscalização que evita causar sanções econômicas imediatas para os infratores”. Além de Felipe Nunes, o levantamento é assinado pelos pesquisadores Raoni Rajão, Jair Schmitt e Britaldo Soares-Filho, todos ligados à UFMG.

Na opinião do advogado Francisco de Godoy Bueno, que atende clientes do agronegócio, o número de embargos era excessivo. “É uma medida preventiva que causava grande prejuízo porque o sujeito ficava sem poder colher sua lavoura.” As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

Fonte: Estadão Conteúdo

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