Descoberta que pode chacoalhar a arqueologia indica que animais gigantes da Era do Gelo seguiram no Brasil por milênios

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Quando a morte chegou, a encontrou à beira do poço natural onde os últimos de sua espécie bebiam água, no sertão do atual Ceará. O corpo da paleolama, uma versão turbinada extinta das lhamas, ficou ali até ser desenterrado em 2006 e finalmente datado agora em 3.492 anos. O mesmo lugar revelou mais fósseis da megafauna, os bichos gigantes da Era do Gelo, com idades semelhantes.

São achados com potencial de revolução e polêmica, pois sugerem que esses animais conviveram com os povos originários do Brasil e só desapareceram milhares de anos depois do que se imaginava. O frio se foi, dizem paleontólogos, mas os mastodontes e outros gigantes continuaram a reinar no Brasil.

Era um tempo de mais biodiversidade em que todo o elenco da Era do Gelo — retratado no filme homônimo da Disney — convivia com a fauna que ainda hoje resiste, como a onça-pintada, a anta e o lobo-guará.

A ciência considera que a extinção da megafauna marca o fim da Era do Gelo. Um período datado em 11,7 mil anos e que a geologia define como o limite entre os períodos Pleistoceno e o Holoceno, no qual vivemos.

Há milhares de anos, o poço das paleolamas atraía toda a bicharada, num lugar seco onde o Cerrado se mistura à Caatinga. E muitos ficaram por lá mesmo ao morrer. Foi o caso de um Xenorhinotherium bahiense, espécie extinta exclusiva da América do Sul, cujo nome significa literalmente besta de nariz estranho. Um experimento da natureza semelhante à mistura de camelo com anta, que deu seu último suspiro há 3.587 anos.

— A surpreendente idade de cerca de 3.500 anos para os fósseis de Xenorhinotherium e de palaeolama revoluciona o que conhecemos sobre as extinções do fim da Era do Gelo. Vai causar polêmica, subverte um dogma da geologia. Mas o passado do Brasil segue, em sua maior parte, desconhecido. Abrimos uma janela no tempo. Estou orgulhoso pelo pioneirismo do trabalho — afirma Ismar de Souza Carvalho, um dos autores do estudo e professor titular de paleontologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Fósseis do mesmo sítio, chamado Jirau, em Itapipoca, no Ceará, e de outro no Rio Miranda, em Mato Grosso do Sul, foram datados pelos cientistas com idades entre 3.500 e 7.900 anos. Foram datados também mastodontes, preguiças-gigantes e tigres-de-dentes-de-sabre, entre outros.

A ser publicado no periódico Journal of South American Earth Sciences, o estudo se chama “3,500 years BP: The last survival of the mammal megafauna in the Americas” (3.500 anos antes do presente: Os últimos sobreviventes da megafauna nas Américas, em tradução livre).

Além de Carvalho, o estudo foi realizado por Fábio Cortes, também da UFRJ; Hermínio de Araújo Júnior, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro; Celso Ximenes, do Museu de Pré-História de Itapipoca; e Edna Facincani, da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul.

As datações por carbono 14 foram realizadas no Laboratório de Radiocarbono da Universidade Federal Fluminense (UFF), o único a realizar esse tipo de análise na América do Sul.

— Temos datações de dois sítios bem distantes um do outro e descartamos fatores, como, por exemplo, contaminação. Datar fósseis, por ser caro e complexo, quase não é feito no Brasil. A maioria dos fósseis costuma ter a idade estimada por inferência de datações dos EUA. Ah, se é preguiça-gigante, mastodonte, então é do pleistoceno. Mas não é assim. É preciso dar uma identidade à geologia brasileira — salienta Carvalho.

Segundo o estudo, mastodontes, tigres-de-dentes-de-sabre e outros gigantes da Era do Gelo sobreviveram ainda por milênios no território atual Brasil, até não suportarem mais as mudanças do clima e do ambiente. O estudo propõe que o Brasil foi último refúgio dos grandes mamíferos.

Itapipoca é conhecida como a cidade dos três climas, por ter em seu território praias, serras e sertão. O estudo mostra que Itapipoca guarda também registros do clima de outros tempos. Eles estão no poço da bicharada extinta, uma formação natural, semelhante a um tanque.

— À primeira vista, esse tanque parece um depósito de ossos amontoados de uma vez, como se fosse um desastre. Mas, na verdade, ele guarda uma mistura temporal, corpos acumulados ali aos poucos, por séculos, milênios. É uma cápsula do tempo, cronológico e climático — explica Carvalho.

Fábio Cortes iniciou o estudo ainda em 2020, durante a pandemia, com uma bolsa da Faperj. A ele incomodava a falta de datações precisas da megafauna e o crescente número de descobertas sugerindo que na América do Sul as extinções não seguiram no mesmo ritmo da do Norte.

Tanto ele quanto Carvalho destacam que pinturas rupestres, como as do Parque Nacional da Serra da Capivara, no Piauí, já indicavam que os povos originários conviveram com a megafauna. Pinturas com bichos que se assemelham a paleolamas, mastodontes e preguiças-gigantes também são encontradas nas serras da Bodoquena e de Maracaju, ambas no Mato Grosso do Sul; algumas cavernas no Mato Grosso, e a região de Terra Ronca, em Goiás.

— O passado do Brasil é incrivelmente inexplorado. Há muito ainda o que conhecer. O que parece polêmico agora, pode ser mostrar a regra à medida que mais pesquisas forem realizadas — salienta Cortes.

Ele lembra que fósseis de mamutes, que também se imaginava extintos no Hemisfério Norte há mais de 11 mil anos, foram descobertos e datados numa ilha do Alasca em 3.500 anos; e na Sibéria, com 5.000 anos.

Quente e úmido

O Brasil dos últimos gigantes já era quente e úmido. A vegetação de savana como o Cerrado, habitat da megafauna, que na Era do Gelo ocupava áreas maiores, perdia espaço para florestas úmidas. Cortes diz que, mesmo na Era do Gelo, o Brasil não chegou a ficar coberto de camadas geladas, mas era 5ºC mais frio do que hoje.

Os pesquisadores acreditam que os campos de Cerrado continuaram a sustentar uma fauna gigante em partes do Nordeste, da Amazônia e do Centro-Oeste até há 3.500 anos. Os animais acabaram ficando restritos a alguns refúgios, até desaparecer.

— Não foi um evento catastrófico, mas um lento declínio, à medida que clima e ambiente também se transformavam. Eles devem ter convivido e sido caçados por povos originários, mas não ao ponto da extinção. O que selou seu destino foi, provavelmente, a perda de habitat em função da mudança do clima — diz Cortes.

Ele observa que antes mesmo de ser publicado, o estudo já enfrenta resistências, mas afirma que datações de mais fósseis, vindos da Bahia e do MS, serão anunciadas em breve.

— Toda mudança radical enfrenta resistências, críticas e isso é normal. Mas a ciência muda e avança. Os estudos de megafauna no Brasil só ganharam corpo neste século. Então, temos muito, mas muito a estudar. Não faltarão mais surpresas — promete.

Fonte: O Globo/Foto: Divulgação e paleoarte de Guilherme Gher

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