Economia de guerra: como empresas dos EUA lucram bilhões com o conflito na Faixa de Gaza

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“A situação em Israel obviamente é terrível, e ela está evoluindo neste momento. Mas acho que se observarmos as crescentes demandas em potencial vindas disso, a maior delas vem da artilharia”, afirmou, no final de outubro de 2023, Jason Aiken, vice-presidente executivo da General Dynamics, uma das maiores empresas do setor de defesa do planeta, durante uma conferência sobre os lucros da companhia no terceiro trimestre daquele ano.

Um dia depois da reunião, as palavras de Aiken começaram a se concretizar na Faixa de Gaza, com o início de uma operação terrestre com o objetivo de “erradicar” o grupo terrorista Hamas, após os ataques de 7 de outubro, que deixaram 1.139 mortos.

O executivo foi preciso na parte da artilharia: ele disse que sua empresa trabalhava para produzir cerca de 100 mil munições por mês — mesmo número que o Exército israelense admitiu ter usado em Gaza desde o início da guerra. A demanda foi tamanha que os EUA aprovaram, em dezembro, a venda de US$ 147 milhões (R$ 753,71 milhões) em munições de 155 milímetros a Israel, em uma das duas únicas operações do tipo reveladas publicamente por Washington.

Em meio à devastação da guerra em Gaza, suas mais de 34 mil vidas perdidas, quase 80 mil feridos, 8 mil desaparecidos e centenas de milhares de deslocados, além dos riscos de uma crise generalizada no Oriente Médio, o setor de defesa vê o conflito como mais uma chance de lucro em um momento que já era considerado “de ouro”.

Com guerras como a da Ucrânia, que demanda uma quantidade de equipamentos poucas vezes vista na história recente, as empresas dos EUA — incluindo a General Dynamics — venderam o equivalente a US$ 238 bilhões (R$ 1,22 trilhão) em equipamentos militares, desde munições até aeronaves, sendo que US$ 80,9 bilhões (R$ 414,8 bilhões) em vendas através do governo americano.

— Armar a Ucrânia, incitar o medo da China, agora a ajuda a Israel, essas empresas agora estão fazendo dinheiro de todas as formas, e elas têm planos para expandir a base de produção de armas — disse ao GLOBO William Hartung, especialista em segurança nacional no Instituto Quincy e autor de uma série de livros sobre o complexo industrial-militar dos EUA. — Todas essas são coisas que a indústria queria há anos, e que agora parecem estar caindo no colo delas.

Neste contexto, o caso israelense merece um capítulo à parte. O país é o maior receptor acumulado de ajuda americana — financeira e militar — com um número estimado em US$ 300 bilhões (R$ 1,538 trilhão, ajustados pela inflação) desde sua fundação, em 1948. Do total, US$ 216 bilhões (R$ 1,11 trilhão) na forma de ajuda militar, cujos envios variaram de acordo com o período histórico. Em 1979, quando a Guerra do Líbano ganhava corpo no país vizinho, o valor chegou a US$ 13,2 bilhões (R$ 67,68 bilhões), número similar a um pacote defendido atualmente por Joe Biden no Congresso. Em 2000, quando estourou a Segunda Intifada, foi de US$ 4,6 bilhões (R$ 23,59 bilhões).

O volume atual de ajuda foi estabelecido no último ano do mandato do presidente Barack Obama, e estipulou o valor de US$ 38 bilhões (R$ 194,84 bilhões), distribuídos ao longo dos 10 anos seguintes, sendo que US$ 3,3 bilhões (R$ 16,92 bilhões) em equipamentos militares e US$ 5 bilhões (R$ 25,64 bilhões) destinados a sistemas de defesa aérea, como o Domo de Ferro. Na prática, se trata de um dinheiro que deverá ser usado, em sua maior parte, na compra de equipamentos militares americanos, gerando lucros…para empresas americanas.

Vendas ‘sigilosas’

Um exemplo conhecido é o dos caças F-35, produzidos pela Lockheed-Martin, aeronave com custo estimado de US$ 77,9 milhões (R$ 399,42 milhões)— a ordem inicial foi de 50 aviões, sendo que 39 foram entregues. No final de março, o governo Biden autorizou a venda de mais 25 aeronaves, em uma operação estimada em US$ 2,5 bilhões (R$ 12,82 bilhões). A transação foi realizada sem alarde, e não precisou ser notificada ao Congresso, como requer a legislação, porque já havia sido autorizada em 2008 pelo Legislativo. Em 2023, o lucro líquido da Lockheed-Martin foi de US$ 6,9 bilhões (R$ 35,38 bilhões).

Essa não foi a única venda “sigilosa” dos EUA. Conforme revelou o Washington Post, em março, a Casa Branca e o Departamento de Estado vêm utilizando brechas legais para continuar fornecendo armas a Israel, incluindo algumas usadas em bombardeios. É o caso, por exemplo, da bomba MK84, produzida pela General Dynamics a um custo individual de US$ 16 mil (R$ 82 mil): com peso de 900 kg, ela foi ligada a ataques que deixaram dezenas de mortos em Gaza desde o ano passado, e as ordens mais recentes da Casa Branca liberaram a venda de 1.800 unidades a Israel. No ano passado, General Dynamics lucrou US$ 3,3 bilhões (R$ 16,92 bilhões).

Para os executivos do setor, os tempos de destruição e morte também rendem salários anuais de até US$ 20 milhões (R$ 102,57 milhões).

Segundo levantamento da organização American Friends Service Committee, cerca de 50 empresas de vários países além dos EUA, incluindo Israel, lucraram com a guerra em Gaza, desde o fornecimento de uniformes e coletes até bombas guiadas por satélite.

Mas o “negócio” bilionário e próspero das empresas de defesa começou a ser questionado, ao menos no caso de Israel, em meio à morte de dezenas de milhares de pessoas e às imagens de destruição absoluta — o ataque com um drone (que não teria tecnologia americana, mas sim britânica) contra trabalhadores humanitários da ONG World Central Kitchen, que matou sete deles, soou como uma gota d’água, e agora dezenas de parlamentares aliados de Biden defendem um cessar-fogo e questionam as vendas.

— Nós não estamos vendo o presidente Biden agir de acordo com o que as leis e políticas americanas determinam, que é impor condições a todos os usuários de armas dos EUA em todos os lugares do mundo, incluindo Israel — disse ao GLOBO John Chappell, advogado e pesquisador jurídico do Programa dos EUA no Centro para Civis em Conflito (Civic).

Chappell lembra que em fevereiro, o presidente assinou um memorando estipulando que todos compradores de armas americanas deveriam seguir as leis internacionais e não impedir a entrega de ajuda humanitária. Contudo, o pesquisador do Civic afirma que a determinação não trouxe, tampouco deve trazer, mudanças a curto ou médio prazo.

— Ele cria um modelo que pode levar a mudanças. Mas é importante ressaltar que, com ou sem o memorando, existem normas nas leis dos EUA e nas políticas de Biden que exigem ações imediatas — aponta Chappell. — Um bom exemplo é a política de transferências de armas convencionais, que veta a venda em situações onde exista a possibilidade de elas serem usadas em violações das leis internacionais. E estamos vendo todos os dias ações dos militares israelenses que parecem ser sérias violações das leis humanitárias.

Porto humanitário

Mas a guerra não é lucrativa apenas para os vendedores de armas: empresas comerciais de carga dos EUA também foram utilizadas em transportes de equipamentos para Israel. Segundo o jornal Haaretz, dezenas de voos fretados pousaram na base de Nevatim, realizados pelas empresas National Airlines, Atlas Air, Kalitta Air e Western Global Airlines.

Segundo o Haaretz, envios semelhantes foram feitos para bases onde os EUA operam ao redor do Mar Vermelho, em uma tentativa de conter os ataques dos houthis contra navios comerciais e militares na região. A milícia, baseada no Iêmen, afirma que realiza as ações em solidariedade à população em Gaza, e pressiona por um cessar-fogo imediato. Segundo especialistas do setor aéreo, o aumento dos preços dos seguros e os riscos às embarcações levaram a uma alta na procura pelo frete aéreo de cargas não militares.

Há outro aspecto que ainda não oferece tantas respostas, mas que levanta questões imediatas. Ao mesmo tempo em que os EUA fornecem armas a Israel, o país também cobra os israelenses para que incrementem o ritmo de entrada de ajuda humanitária em Gaza, hoje considerado insuficiente para as necessidades diárias.

Para tentar amenizar a situação, os americanos iniciaram lançamentos aéreos de alimentos e insumos, através da Força Aérea, e anunciaram planos para a construção de um porto temporário em Gaza, como parte de um corredor marítimo com custo estimado de US$ 200 milhões, afirmaram fontes da Casa Branca à agência Reuters.

Segundo a CNN, o planejamento está a cargo de uma empresa chamada Fogbow, baseada nos EUA e composta por ex-militares e ex-integrantes do governo americano e organismos internacionais. Não está claro quanto a Fogbow receberá pela consultoria. A montagem do porto, afirma o Pentágono, será feira por mil militares, apesar de o governo Biden afirmar que não haverá soldados do país em Gaza. A Fogbow não comentou as informações publicadas.

Em março, um jornalista do Canal 14 de Israel disse que uma empresa local, supostamente ligada ao Hamas, a al-Hisi, participaria da operação do porto, a pedido dos próprios EUA, e supostamente mediante algum tipo de pagamento. Nenhum dos envolvidos na denúncia, tampouco o governo do Catar, que teria feito a mediação, se pronunciou.

Fonte: O Globo/Foto: AFP

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