Entenda os impactos da suspensão dos processos de pejotização pelo STF

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Em uma decisão recente, o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou a suspensão de todos os processos trabalhistas que discutem a chamada “pejotização”. Ou seja, contratos em que trabalhadores são obrigados a abrir uma empresa (CNPJ) para prestar serviços a outra empresa, muitas vezes em condições que configurariam um vínculo empregatício clássico: subordinação, horário fixo, metas, rotina diária e pessoalidade.

A decisão preocupa profundamente quem ainda acredita no papel social do direito do trabalho, e levanta um alerta que precisa ser ouvido: se não for mais possível discutir se esses contratos são fraudulentos ou não, estamos presenciando o esvaziamento, na prática, da Justiça do Trabalho no Brasil.

Por que o STF tomou essa decisão?

Essa suspensão aconteceu no contexto de um tema de repercussão geral — ou seja, o Supremo decidiu que vai analisar um caso com potencial de impactar milhares de processos semelhantes em todo o país, e enquanto isso, os tribunais inferiores devem aguardar. O objetivo da repercussão geral é unificar o entendimento da Justiça sobre temas relevantes e recorrentes, evitando decisões conflitantes em diferentes instâncias.

O caso que deu origem a essa repercussão geral envolve um médico contratado como pessoa jurídica para prestar serviços a um hospital. O profissional alegou que havia uma relação de emprego disfarçada sob o manto da pejotização, e pediu o reconhecimento do vínculo trabalhista. O Tribunal Superior do Trabalho (TST) deu ganho de causa ao médico, reconhecendo que, mesmo com o contrato em nome de uma empresa, a relação era de fato empregatícia.

O hospital, então, recorreu ao STF, alegando que a Constituição garante liberdade às partes para contratar como quiserem e que a decisão do TST violaria o princípio da livre iniciativa e da autonomia da vontade. Com isso, o Supremo reconheceu a repercussão geral do tema, o que significa que a decisão final do STF vai servir de base para todos os casos semelhantes em todo o país.

Até que o julgamento aconteça, todos os processos sobre pejotização estão paralisados, deixando os trabalhadores em uma espécie de limbo jurídico — muitos sem emprego formal, sem direitos reconhecidos e agora também sem acesso imediato à Justiça para discutir essas fraudes.

O que está em jogo?

O que está sendo colocado em risco não é um detalhe técnico. É a própria razão de existir da Justiça do Trabalho: analisar se há ou não uma relação de emprego disfarçada. A pejotização, quando usada de forma indevida, é uma forma de burlar os direitos trabalhistas, transferindo todos os riscos e encargos da empresa para o trabalhador — que vira “empresário de si mesmo”, mas sem férias, 13º salário, FGTS, INSS, seguro desemprego, estabilidade e todos os direitos conquistados a duras penas ao longo do último século.

Um pouco de história: como chegamos até aqui?

O Direito do Trabalho surgiu para proteger o trabalhador diante da desigualdade natural entre o capital e o trabalho. No Brasil, sua consolidação veio com a CLT em 1943, fruto de um movimento mundial que reconheceu que, sem proteção mínima, o trabalho vira exploração.

Com o tempo, direitos sociais passaram a ser reconhecidos como fundamentais. A Constituição de 1988 reafirmou isso, colocando o trabalho digno como um pilar da ordem social brasileira.

Mas nos últimos anos, temos assistido a um processo contínuo de demonização da Justiça do Trabalho. Uma narrativa foi construída para dizer que ela atrapalha o desenvolvimento econômico, que só serve para “proteger vagabundos”, que as ações são “aventuras jurídicas” ou que o vínculo empregatício é coisa do passado.

Mas será mesmo que o problema está na Justiça do Trabalho — ou na cultura de descumprimento sistemático da lei por maus empregadores?

Quem é o verdadeiro vilão?

A verdade é que a Justiça do Trabalho incomoda. Incomoda quem lucra precarizando. Incomoda quem enriquece pagando pouco, exigindo muito e ignorando direitos. É mais fácil transformar a Justiça do Trabalho em inimiga do que enfrentar o fato de que a informalidade, o trabalho análogo à escravidão, o assédio e a pejotização forçada ainda são práticas comuns no Brasil.

É mais fácil dizer que o problema é o juiz que reconhece o vínculo, do que admitir que milhares de pessoas vivem como empregados sem ter nenhum direito.

Uma decisão que pode abrir um caminho sem volta

Ao suspender os processos que discutem pejotização, o STF praticamente diz: não vamos mais discutir se existe fraude nos contratos com CNPJ. O que estiver “no papel” vai valer — mesmo que o dia a dia prove o contrário.

Essa decisão, se mantida, abre um precedente gravíssimo. Significa dizer que o trabalhador não terá mais onde recorrer quando for forçado a atuar como PJ, mesmo que cumpra todas as características de um empregado. Isso inviabiliza a função protetiva do Direito do Trabalho e transforma o contrato de trabalho em um jogo de aparência: o que importa não é a realidade, mas a forma como se registra.

O que podemos fazer?

É preciso reagir com firmeza, com argumentos, com consciência de classe, com articulação social e política. O ataque aos direitos sociais não é novo, mas nunca esteve tão organizado, tão disfarçado de “modernidade” e “eficiência”.

A Justiça do Trabalho não é o problema. O problema são as relações de trabalho abusivas. E quando deixamos de discutir se há fraude, damos um recado perigoso: a esperteza venceu. Venceu o discurso de que tudo é contrato entre “iguais”, quando todos sabemos que o trabalhador é, na maioria das vezes, a parte mais frágil.

Para refletir:

Quando foi que começamos a aceitar que o trabalho perdeu seu valor humano?

Por que é tão difícil enxergar o trabalhador como alguém que merece proteção — e não como alguém que atrasa o “progresso”?

Que tipo de país queremos ser: um país de empreendedores ou um país de explorados sem direitos?

A decisão do STF precisa ser debatida com profundidade, responsabilidade e urgência. Porque mais do que uma questão jurídica, é uma questão de dignidade

 

 

 

*R7/Foto: MArcello Casal Jr/Agência Brasil

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