Era início dos anos 2000 quando Henry Ortiz flagrou com uma câmera amadora a cena que jamais apagaria da memória: um grupo de arqueólogos, a poucos metros dos portões do estádio, escavando esqueletos e múmias de um cemitério pré-inca no Peru. Era o Monumental de U, em Lima, palco da final da Libertadores de 2025.
– Menos de um minuto de carro saindo do estádio estavam as escavações – conta Henry, 20 anos depois da gravação do documentário, que chama de artesanal e intitulou Los Visitantes.
Encravado nas montanhas e prestes a receber Palmeiras x Flamengo às 18h de sábado, no horário de Brasília, o estádio com capacidade para 80 mil pessoas está construído na “zona de influência” do antigo cemitério, dentro do complexo arqueológico de Puruchucu, uma das zonas pré-incaicas mais importantes de Lima.
É tanto que no processo de terraplanagem para construção, de 1991 até a abertura em 2000, operários encontraram também fragmentos de cerâmica e tecelagem, em que parte dos materiais foi levada para depósitos do Instituto Nacional de Cultura e outras entregues à municipalidade de Ate.
Hoje formado diretor audiovisual, Henry Ortiz descobriu a história através de dois amigos, torcedores do Universitario, que é time dono do estádio, em uma época que o clube estava em crise, enfrentando problemas administrativos e financeiros.
Foi quando decidiram contar a história, buscando a solução dos problemas em uma antiga tradição.
Receberam em Lima, na sede de uma das organizadas do clube, três Pampa Misayoc Q’ero, que são sacerdotes andinos de Cusco e chamados descendentes diretos dos incas, e por recomendação deles fizeram uma cerimônia conhecida no Peru como “Pago a La Tierra”. Um pagamento à terra.
– Os Q’ero entendem que claramente há um conflito entre os vivos e mortos, os espíritos que habitam o espaço e têm direito sobre ele – explica Henry, que se comunicou na época com o pouco do dialeto quéchua que conhece.
– A partir disso que se propõe o “Pago”, algo que se faz muito nos Andes. É uma cerimônia em que a pessoa agradece a terra por tudo que lhe dá.
– Faz uma mesa, arma uma oferenda, com alpaca, açúcar, enche de símbolos e valores positivos. Está não só agradecendo, mas também alimentando a terra para torná-la forte – completa o diretor, recordando as cenas vividas duas décadas atrás.
É algo que provém das montanhas do Peru e reconhece todos que são parte do ecossistema, as montanhas, os vivos, os mortos.
As múmias foram na época retiradas do local para museus, mas ainda hoje as cerimônias por vezes se repetem na torcida como forma de reforçar a identidade e a ligação do estádio e seu clube com as raízes andinas.
Há poucas construções de grande porte em seu entorno. Está marcado principalmente pela paisagem acinzentada e de montanhas, com o Cerro Puruchucu impondo-se por trás das arquibancadas, levando areia ao asfalto e às calçadas.
O plano inicial entregue pelo arquiteto Lavellaja tinha ainda um hotel cinco estrelas integrado, uma área comercial com mais de 200 lojas, um boulevard gastronômico e torres residenciais, sendo o centro de um megacomplexo urbano inspirado nos europeus dos anos 90. Só o estádio, contudo, saiu do papel.
Caminhando de seus arredores na direção dos portões, pouco se vê do interior. Mas não à toa: ele é o único estádio de Lima entre montanhas e seu campo está construído cerca de 18 metros abaixo do nível do solo, então do lado de fora somente os camarotes de luxo são visíveis a quem passa.




