A crise diplomática com a Nicarágua, que levou à expulsão de embaixadores nesta quinta-feira (8), tem mais impactos negativos para o país da América Central que para o Brasil, apontam especialistas em relações internacionais e direito internacional ouvidos pelo R7. A Nicarágua, governada pelo ditador Daniel Ortega, já lida com o isolamento de outros países e tem pouca relevância no cenário econômico internacional.
Os estudiosos analisam, ainda, que as trocas comerciais entre Brasil e Nicarágua são pequenas. Segundo o Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, as exportações do Brasil para a Nicarágua somaram US$ 68,3 milhões entre janeiro e julho de 2024. Nesse intervalo, as importações brasileiras vindas do país centro-americano ficaram em US$ 2,9 milhões. A título de comparação, no mesmo período, o Brasil vendeu US$ 61,8 bilhões para a China e comprou R$ 34,7 bilhões da nação asiática.
Ortega expulsou o embaixador brasileiro no país, Breno de Souza Brasil Dias da Costa, por ele não ter comparecido à cerimônia de aniversário de 45 anos da Revolução Sandinista, em 19 de julho. Em resposta, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva expulsou a embaixadora da Nicarágua em Brasília, Fulvia Patricia Castro Matus.
As relações entre os dois países estão em processo de esfriamento desde 2016, com o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, com uma breve tendência de retomada em 2017. Em 2018, a situação piorou novamente, com o agravamento do cenário político da Nicarágua sob o regime de Ortega.
O internacionalista João Coser, que estuda América Latina e política externa brasileira, aponta que a expulsão das representações máximas de um Estado em outro país demonstra total quebra de laços diplomáticos. No caso Brasil-Nicarágua, com o cenário dos últimos anos, o movimento já era esperado.
“Esse episódio foi algo silencioso. O Brasil é reconhecido pelas boas relações diplomáticas. A situação é delicada, e Ortega expulsou o embaixador brasileiro sabendo das implicações que poderia causar”, afirma, ao citar a reciprocidade nas relações diplomáticas.
Apesar de não ser uma prática comum da diplomacia brasileira, Coser cita outras ocasiões em que representações estrangeiras foram expulsas do Brasil. “Temos como exemplos 1948, quando o embaixador alemão foi expulso por tensões do pós-guerra; em 1964, durante a ditadura militar daqueles que se opunham ao governo; e em 1984, o embaixador da Líbia, sob altas tensões diplomáticas”, exemplifica.
Protagonismo brasileiro e isolamento da Nicarágua
O professor de relações internacionais da ESPM São Paulo Roberto Uebel destaca que o episódio que envolve os embaixadores impacta mais a Nicarágua que o Brasil, devido ao “peso” dos dois países. “É hiperdimensionado para a Nicarágua, mas é uma dimensão de pouca expressão e relevância para o Brasil”, pontua.
“O Brasil é um protagonista latino-americano, e inclusive inspira as outras nações, enquanto a Nicarágua é um pequeno país centro-americano. Então, o impacto de não contar mais com a parceria e o reconhecimento do governo brasileiro pode levar a um isolamento ainda maior da ditadura de Ortega na América Central e na América Latina. Já tem relações complicadas, por exemplo, com El Salvador, e relações muito complexas com o Panamá. O Brasil servia como intermediário da Nicarágua com outros países da região, inclusive os Estados Unidos”, observa o especialista.
Relações inexpressivas e comparação com Venezuela
Uebel afirma que a Nicarágua não é um parceiro estratégico, por ser um país de pouca expressão econômica para as relações comerciais do Brasil na América Central. “Acho que, como próximo passo, talvez o Itamaraty deva fazer algum tipo de mapeamento de quais relações com a Nicarágua ainda interessam para o Brasil. São relações comerciais inexpressivas, se comparadas a outros países da região, como Costa Rica, Panamá, El Salvador e Honduras”, avalia.
O professor compara a situação da Nicarágua ao atual cenário da Venezuela, que assim como o país centro-americano tem um governo autoritário. Na visão do professor, a ação do Brasil é diferente nos dois casos porque a Venezuela é mais relevante que a Nicarágua. Apesar de o tratamento não ser o mesmo, a posição brasileira em relação ao regime de Ortega sinaliza o afastamento do Brasil de ditaduras.
“[A Venezuela] é um país fronteiriço, tem toda a questão energética — o estado de Roraima todo depende da Venezuela, coisas que a Nicarágua não oferece para o Brasil. [A expulsão da embaixadora nicaraguense] demonstra também para a comunidade latino-americana que o diálogo do governo brasileiro com regimes autoritários, inclusive de esquerda, como o de Ortega, não faz parte mais dos princípios da diplomacia brasileira”, acrescenta.
‘Crítica dentro das quatro linhas’
Na mesma linha dos colegas, o advogado doutor em democracia e direito constitucional Acácio Miranda destaca o impacto político do episódio para o Brasil. “A Nicarágua, por mais que seja da América, é um país com quem o Brasil tem poucas relações econômicas, e são elas que, no fim das contas, acabam pautando as relações internacionais”, argumenta.
Miranda avalia que o fato de Lula ter expulsado a embaixadora nicaraguense pode ser lido como uma repulsa do petista à ditadura de Ortega. “Mas é uma crítica dentro das quatro linhas, uma vez que Lula não fez um apontamento acerca de eventuais ilegalidades ou excessos cometidos na Nicarágua. É natural que um presidente, especialmente de um país importante nas Américas, critique outros países. O que é despropositada é a reação do líder da Nicarágua”, completa o advogado.
Entenda
Lula tentou interceder em defesa do bispo católico Rolando Álvarez, preso pela ditadura nicaraguense no ano passado por críticas ao regime. O movimento em defesa do religioso, segundo o próprio petista, partiu de um pedido do papa Francisco. Ortega não retornou o contato do brasileiro.
Em resposta, Lula orientou que o embaixador Breno de Souza Brasil Dias da Costa não participasse mais de atividades que envolvessem o governo nicaraguense. A ausência do diplomata na cerimônia de aniversário de 45 anos da Revolução Sandinista, celebrada em 19 de julho, teria sido a gota d’água para Ortega.
A princípio, a ditadura apenas sinalizou que expulsaria o embaixador brasileiro. Como em um primeiro momento não houve comunicação oficial da decisão, o Ministério das Relações Exteriores interpretou que havia espaço para negociações. A atuação da diplomacia brasileira, no entanto, não surtiu efeito. A indicação de Breno de Souza Brasil Dias da Costa para o posto nicaraguense foi aprovada pelo Senado em dezembro de 2021.
Em nota oficial, o Itamaraty informou que “o governo brasileiro decidiu pela retirada da Embaixadora da Nicarágua em Brasília como resultado da aplicação do princípio da reciprocidade à medida adotada pelo governo nicaraguense em relação ao Embaixador brasileiro em Manágua”.
*R7/Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado – 1.12.2021