Em sua primeira semana como virtual candidata democrata à Presidência dos EUA, Kamala Harris confrontará nesta quinta-feira o tema mais sensível da política externa americana ao se encontrar com o premier israelense, Benjamin Netanyahu, que está em Washington. Nesta quarta-feira, ele discursou no Congresso americano, onde defendeu suas políticas para a guerra em Gaza, atacou o Irã e pediu mais apoio, inclusive militar, de Washington.
A viagem joga luz sobre as posições de Kamala, que assumiu uma voz ativa sobre o conflito na Faixa de Gaza, especialmente sobre a situação dos palestinos. Em um discurso sobre os direitos civis em Selma, no Alabama, ela chamou atenção ao pedir um “cessar-fogo imediato”, e criticando Israel por criar uma “catástrofe humanitária” no enclave.
Nesta quinta-feira, Kamala se reunirá com o líder israelense na Casa Branca. Mas suas declarações antes e depois da conversa serão observadas de perto em busca de sinais sobre sua abordagem sobre a guerra entre Israel e o grupo terrorista Hamas caso seja eleita em novembro.
Biden, que também se encontrará com Netanyahu, viu sua popularidade despencar entre os democratas progressistas por causa de sua recusa em barrar o envio de armas para Israel. O dano foi mais sério em estados decisivos, como o Michigan. A expectativa agora é que Kamala consiga se livrar desse estigma e recuperar o apoio de eleitores que dizem jamais votar em Biden novamente por causa de suas políticas para Israel.
Kamala não acompanhou o discurso do premier no Congresso na quarta-feira. Ao invés disso, discursou em um evento, em Indiana, realizado por uma das mais antigas irmandades negras do país. Embora tenha feito críticas mais agudas do que as de Biden à guerra, ela não deve expressá-las diante de Netanyahu.
Ainda não está claro até que ponto Kamala e Biden divergem sobre Israel. O pedido por um cessar-fogo foi similar à posição do presidente, que exige que o Hamas aceite uma proposta israelense para suspender os combates em troca da libertação dos reféns em Gaza. Mas seu tom e a ênfase no sofrimento humano marcam uma diferença retórica sobre como ela vê a guerra.
No encontro com Netanyahu, Kamala deve reiterar o apoio americano à guerra de Israel em Gaza. Também deve apresentar suas preocupações com o número de mortes entre os palestinos, que superou 38 mil de acordo com o Ministério da Saúde de Gaza, e defender um acordo de cessar-fogo com o Hamas o quanto antes.
Não se sabe se Kamala questionou Biden sobre as políticas para Israel, mas ela tem feito pressão, incluindo sobre o presidente, para que expresse mais simpatia pelos palestinos. Analistas dizem que ela desempenhou um papel notável ao criticar o governo Netanyahu, mais do que Biden estava disposto, por motivos diplomáticos ou pessoais.
Ela também impressionou alguns críticos da guerra, além de irritar aliados de Israel, com declarações de apoio aos protestos em universidades.
— Eles estão mostrando exatamente como a emoção humana deve ser em resposta a Gaza — disse à revista The Nation. Ao mesmo tempo em que declarou que os manifestantes disseram coisas “que absolutamente rejeita”, acrescentou que “entende a emoção por trás” das palavras.
Em entrevista ao site israelense Ynet, na terça-feira, Michael Herzog, embaixador do país nos EUA, falou sobre Kamala.
— No conjunto, seu retrospecto é positivo, e ela já declarou apoio ao Estado de Israel e à ajuda americana a Israel — afirmou.
Contudo, o diplomata disse que recentemente ela “fez algumas declarações problemáticas no contexto da guerra em Gaza”, algo que disse ter sido influenciado “pelo campo mais progressista do Partido Democrata”
— Isso é algo que continuará a nos seguir no futuro? — questionou Herzog. — Teremos que ver e, claro, dialogar com ela sobre esses temas.
Alguns analistas destacam que o marido de Kamala, Doug Emhoff, é judeu e atuou contra o aumento de casos de antissemitismo nos campi universitários e outros lugares. Mas judeus americanos estão divididos sobre as políticas de Washington para Israel, e as visões dele sobre o tema não são claras.
A vice-presidente tem sido poupada em protestos que atingem Biden, o secretário de Estado, Antony Blinken, e outros integrantes do governo, frequentemente acusados de participarem de um “genocídio”. Alguns pregam a cautela neste momento.
— Embora a Vice-Presidência seja limitada, muitos sentem que ela poderia melhorar a grave falta de empatia de Biden pelos palestinos, além dos laços com a velha guarda da Aipac no partido — disse Waleed Shahid, co-fundador do Movimento Nacional dos Não Comprometidos (que nas primárias não votaram em nenhum candidato, nem em Biden). — Contudo, desafiar o poder da Aipac dentro do Partido Democrata ainda é uma tarefa considerável, não importa quem seja o indicado.
Citada por ele, a Aipac é a sigla em inglês para Comissão Americano-Israelense de Assuntos Públicos, o principal lobby pró-Israel nos EUA.
Assessores de Kamala Harris dizem que ela segue comprometida com seu apoio a Israel. Ela condenou os ataques de 7 de outubro do Hamas, e no mês passado participou de um fórum sobre a violência sexual contra vítimas israelense durante a ação. A vice-presidente ainda se encontrou com famílias de reféns americanos.
Ela tem se encontrado com integrantes do governo israelense, incluindo o presidente, Isaac Herzog, e Benny Gantz, ex-integrante do Gabinete de Guerra de Netanyahu. Também participou de mais de 20 telefonemas entre Biden e o premier.
Kamala ainda desempenhou papel crucial em conversas com os países árabes. Em dezembro, representou Biden na COP28, em Dubai, e se encontrou com líderes da região pela primeira vez desde o início da guerra. Depois das reuniões, ela anunciou que os EUA eram contra o deslocamento forçado de palestinos de Gaza, e delimitou um plano de três etapas para reconstruir, proteger e governar o enclave após o fim do conflito.
Mesmo antes de 7 de outubro, Kamala mantinha uma postura acrítica sobre Israel, e chegou a discursar na convenção nacional da Aipac, em 2017, quando ainda era senadora, um convite que disse ter sido “uma honra”.
Na época, disse que seu primeiro ato no Senado seria apoiar uma resolução condenando um pedido do Conselho de Segurança da ONU para que Israel “cessasse imediatamente e completamente todas as atividades de colonos em territórios palestinos ocupados”. Harris disse que a medida, que não foi vetada pelo então presidente, Barack Obama, era um obstáculo a um eventual acordo de paz entre israelenses e palestinos.
Joel Rubin, especialista em segurança nacional que trabalhou com organizações pró-Israel, disse que as ações e palavras de Kamala não devem causar problemas para ela.
— As pessoas da esquerda ficarão bravas porque ela se encontrou com o primeiro-ministro. As pessoas na direita podem ficar bravas por não ter ficado atrás dele [no discurso no Congresso, onde ela deveria presidir a sessão] — disse Rubin, que trabalhou como subsecretário de Estado no governo Obama. — Mas ela está assumindo a posição de uma líder americana que precisa equilibrar suas responsabilidades.
Fonte: O Globo/Foto: Jim Vondruska/Getty Images/AFP