As disputas entre grupos armados são uma característica antiga e persistente no Rio de Janeiro, com efeitos conhecidos e desastrosos. Décadas de insistência por parte das autoridades em atuar por meio exclusivo de operações policiais, com baixíssimo investimento em inteligência e pouco ou nenhum controle sobre a atuação corrupta e violenta de seus agentes colaboraram para chegarmos a essa situação. Felizmente, a mobilização da sociedade civil e decisões importantes do Supremo Tribunal Federal tornam as operações policiais um pouco mais seguras e transparentes, reduzindo a letalidade policial, que permanece muito acima dos padrões compatíveis com um regime democrático.
Apresentamos, à luz dos dados produzidos pelo GENI/UFF e o Instituto Fogo Cruzado, caminhos alternativos para o enfrentamento ao controle territorial armado e as disputas que ele enseja. Entre 2008 e 2023 todos os grupos armados expandiram suas áreas controladas, com a exceção da ADA, que apresentou redução de 75,8%: o TCP cresceu 79,1%, o CV cresceu 89,2%, mas foram as milícias quem mais expandiram os seus domínios, com um salto de 204,6%. Esse crescimento se fez apenas em 14% dos territórios por meio de conquistas de áreas sob controle de outros grupos, ao passo que em 86% ocorreu pela colonização de áreas antes não dominadas.
Diante desta rápida caracterização, duas medidas complementares deveriam ser tomadas:
A primeira, se dirige a impedir o crescimento silencioso em direção a áreas não controladas, sobretudo pelas milícias e em regiões pouco urbanizadas. O modelo de negócios das milícias, agora copiado pelas facções, baseia-se em atividades parasitárias, que extraem recursos dos diversos serviços e mercados urbanos. Políticas de cunho regulatório deveriam incidir, por exemplo, sobre o mercado imobiliário, o transporte público e a infraestrutura urbana. O caso Marielle Franco escancarou como a violência e a produção urbana são constitutivos de uma urbanização miliciana, ancorada em um marco de poder que precisa ser enfrentado com urgência.
Mas não se pode ignorar a parcela minoritária da expansão por meio de confrontos, que tanto afligem a população residente em áreas controladas. Deste ponto de vista, nos últimos dois anos o Comando Vermelho foi o grupo que mais cresceu pela conquista de áreas de outros grupos, sobretudo das milícias. Esse crescimento foi maior na Baixada e no Leste Fluminense, mas, na Capital, se concentrou nas zonas norte e oeste, com focos de conflito muito explícitos. Curioso que o CV é o grupo que mais conquista e o que mais perde áreas por confronto, tratando-se, portanto, do grupo que mais envolvido em confrontos.
Nossa hipótese para entender o acirramento dos conflitos envolvendo o CV é que vem ocorrendo uma espécie de reorganização do grupo. Durante quase dez anos o CV estabeleceu uma dupla frente de combate, interna ao Rio de Janeiro, sobretudo frente ao avanço das milícias e, nacional e internacionalmente, com o PCC pelo controle dos pontos logísticos das rotas do mercado de drogas. Nos últimos anos, a facção passou a atuar de forma mais intensa no tráfico de cocaína para a Europa, aproveitando-se do papel renovado do Brasil nas rotas internacionais. No Rio de Janeiro, tomou vantagem da fragmentação das milícias, decorrente da morte ou prisão de lideranças importantes.
Nesse sentido, a segunda medida aqui proposta é uma indicação para o desmantelamento de redes criminais em suas diversas escalas: a atuação sobre as posições de intermediação é sempre mais eficaz para dificultar a sua recomposição. Já a atuação sobre a base pobre e precária produz o encarceramento massivo que fortalece esses grupos (que controlam as prisões) e aquela voltada sobre as lideranças amplifica as disputas por sucessão internas e externas, intensificando os conflitos armados.
O enfrentamento conjunto ao avanço mais amplo e silencioso das milícias e aquele mais pontual e conflitivo do CV permitiriam atuar de forma estrutural sobre a lógica do controle territorial e sua expansão. Tanto as políticas de regulação de mercados urbanos, quanto as de desmantelamento inteligente de redes criminais exigem análise baseada em dados, planejamento, investigação, integração institucional e inteligência. O caminho é longo, mas talvez mais importante seja iniciar a caminhada na direção correta, em vez de insistir no que já se faz a décadas e que já provou ser parte do problema.
*Coordenadores do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense
Fonte: O Globo/Foto: Márcia Foletto