Nos últimos 10 anos, o professor, advogado, filósofo, mestre e doutor em Direito Silvio Almeida se tornou um dos intelectuais mais conhecidos do Brasil. Sua escolha como ministro dos Direitos Humanos e Cidadania, portanto, não chegou a surpreender quem acompanhava as discussões sobre o tema mais recentemente.
Pouco mais de dois meses depois de sair da condição de “pedra” para a de “vidraça”, o agora ministro ainda mantém a fala pausada e didática e a paciência para explicar seus posicionamentos por mais que possam parecer controversos. Foi assim que ele recebeu a reportagem da BBC News Brasil na segunda-feira (7/03) na sede da pasta, em Brasília.
Ao longo de quase 50 minutos de entrevista, Almeida defendeu a criação de uma comissão para avaliar se o Estado brasileiro seguiu as recomendações da Comissão Nacional da Verdade (CNV), que apurou violações de direitos humanos durante a ditadura militar. A comissão já é vista como uma espécie de “vespeiro” político com potencial para desagradar integrantes das Forças Armadas.
Almeida também defendeu que o Supremo Tribunal Federal (STF) julgue uma ação que está parada desde 2015 que analisa a descriminalização das drogas. À BBC News Brasil, Almeida disse ser favorável à descriminalização das drogas e afirmou acreditar que ela poderia diminuir a pressão sobre o sistema carcerário brasileiro.
Dados de junho de 2022 (os mais recentes) mostram que a população carcerária do Brasil é de aproximadamente 837 mil pessoas, segundo o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), feito pelo Ministério da Justiça.
“Temos que tratar isso como uma questão de saúde pública, como uma questão que não se resolve por meio do encarceramento, com prisão e com punição”, disse.
Isso aconteceria porque estudos indicam que a atual lei de drogas gerou uma “explosão” no número de pessoas presas por crimes relacionados ao tráfico de drogas.
Apesar de se mostrar favorável à descriminalização das drogas, Almeida afirmou que o governo não estaria se movimentando para que o Supremo julgue o caso.
O ministro também afirmou que o governo trabalha para criar um estatuto para vítimas de violência que incluiria policiais, numa resposta à crítica de que a chamada “turma dos direitos humanos” defenderia apenas criminosos.
O ministro também negou que o atual governo esteja politizando a crise humanitária que afeta o povo indígena Yanomami ao atribuir a responsabilidade pela situação à gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).
Um dos pontos controversos da entrevista foi a defesa que o ministro fez da posição do governo brasileiro de se abster e não assinar uma declaração de mais de 50 países condenado violações de direitos humanos ocorridas na Nicarágua, país comandado por Daniel Ortega.
Segundo Almeida, ao não assinar a declaração, o Brasil não estaria se omitindo ou sendo leniente com o regime nicaraguense, mas mantendo canais de diálogo abertos para tentar encontrar alternativas. “O Brasil nunca teve e não tem leniência em relação a isso”, disse o ministro.
Ao final da entrevista, Almeida deu a entender que é favorável à descriminalização do aborto, outro tema pendente de julgamento no STF. “Chega de homens dando opinião sobre a vida, sobre o corpo e sobre a saúde das mulheres […] sou a favor de que elas (mulheres) decidam”, disse.
Confira os principais trechos da entrevista:
BBC News Brasil – O senhor anunciou há alguns dias que criaria uma comissão para avaliar como o governo brasileiro seguiu as recomendações feitas pela Comissão Nacional da Verdade, que apurou violações de direitos humanos durante a época da ditadura militar. Por que isso é necessário?
Silvio Almeida – Quando se fala de justiça e de direitos humanos, temos que falar daquela trinca: memória, justiça e verdade. A verdade é um elemento fundamental, porque o esclarecimento de todos os fatos, principalmente os que foram praticados em períodos sombrios como o que o Brasil atravessou entre 1964 e 1985, têm que vir à luz até para que nós não repitamos os mesmos erros.
BBC News Brasil – Uma das recomendações feitas pela CNV era de que as Forças Armadas devessem assumir a culpa por violações de direitos humanos praticadas por militares durante a ditadura. O senhor não teme que isso, de alguma forma, crie mais tensão nas relações já tensas entre o governo e as Forças Armadas?
Silvio Almeida – Há todo um trabalho que é feito pelo Ministério da Defesa e por outros ministérios, sob condução do presidente Lula […] eu não tenho esse temor porque se eu tivesse o temor de que discussões como essa pudessem causar qualquer abalo à democracia, não faria sentido apostar na democracia […] essa recomendação não vem apenas de um trabalho do ministério, mas é um reclamo da sociedade e também do próprio governo e da comunidade internacional. A gente está num momento muito propício para estabelecer uma forma democrática de discutir o futuro presente, passado e o futuro do país.
BBC News Brasil – O presidente Lula deu aval ao senhor para que seja criada essa comissão e para que se reveja as recomendações, em especial no que se refere às Forças Armadas assumirem alguma culpa?
Silvio Almeida – Essa comissão não vai impor ou determinar aquilo que vai ser feito. É uma comissão que vai olhar para as possibilidades de a gente estabelecer um diálogo. Todas as decisões passam pelo presidente Lula, passam pelo Ministério da Defesa, passam por todos os outros ministérios. Não há possibilidade de a gente pensar que qualquer decisão seja tomada sem pensar em todas as consequências políticas, sem pensar nas tensões e nos conflitos […] Nada do que for decidido nesse âmbito (da comissão) deixará de ser objeto de uma avaliação criteriosa do Presidente da República.
BBC News Brasil – Esse reclamo que o senhor diz existir, não seria de uma parte da população, de uma bolha mais à esquerda? O senhor acredita que essa é uma pauta da sociedade brasileira como um todo?
Silvio Almeida – Essa discussão não atende a uma bolha da sociedade brasileira porque estamos falando de democracia. E nem se trata só de falar de culpa das Forças Armadas. Não é disso que se trata. O grande pensamento é: como fazemos para consolidar a democracia, para impedir que atos como esse ato de 8 de janeiro se repitam? […] não há interesse nenhum de que os saudosos de períodos ditatoriais se apresentem como alternativa.
BBC News Brasil – A Comissão também prevê que o Estado devia perseguir a punição dos envolvidos nas graves violações cometidas durante a ditadura. O governo vai entrar com alguma ação questionando a Lei da Anistia?
Silvio Almeida – Não. Isso não foi discutido. Essa é uma discussão que exige um processo muito mais apurado. Muito mais concertado. Mas isso não foi discutido.
BBC News Brasil – Na sua opinião, a Lei da Anistia foi um erro?
Silvio Almeida – Eu acho que a Lei da Anistia, de alguma maneira, permitiu que graves crimes contra a humanidade não tivessem a punição devida no tempo devido.
BBC News Brasil – Mas só para ficar claro na sua avaliação, a Lei da Anistia foi um erro ou não?
Silvio Almeida – Acho que a maneira como ela foi conduzida não foi a mais apropriada. O Judiciário brasileiro teve a chance de limitar os efeitos da Lei da Anistia. Após isso, a Lei de Anistia não foi um erro, mas a maneira com que a lei inicial foi aplicada, permitindo que torturadores assassinos pudessem se recolocar no espaço público brasileiro, isso, sem dúvida nenhuma, foi um equívoco.
BBC News Brasil – Parte significativa da população que apoiou o agora ex-presidente Jair Bolsonaro comumente argumenta que se for para revisitar a Lei de Anistia para punir agentes do Estado que cometeram crimes naquela época, também deveria se punir guerrilheiros e militantes que cometeram crimes na mesma época. Como é que o senhor responde esse tipo de argumento?
Silvio Almeida – Essa ideia de de colocar aqueles que lutaram contra a ditadura e aqueles que perpetraram e apoiaram a ditadura é uma falsa equivalência que tem o condão (intenção) de simplesmente tentar colocar do mesmo lado aqueles que de alguma maneira resistiram à violência, aqueles de alguma maneira que perderam sua vida, que foram torturados, que tiveram a sua existência totalmente comprometida, com aqueles que se refestelaram no sangue, no ódio e também na destruição da situação democrática no Brasil.
BBC News Brasil – O senhor acredita que nesse governo as Forças Armadas reconhecerão sua culpa em relação às violações cometidas durante a ditadura?
Silvio Almeida – Não sei se isso vai acontecer ou se isso vai ser resultado de um longo processo histórico. Mas a questão toda é que a palavra “culpa” tem que ser substituída por uma outra palavra: responsabilidade. Quando falo de responsabilidade, se trata não apenas do reconhecimento. E aí é mais do que simplesmente dizer o que foi feito, mas também orientar e estruturar no sentido de garantir que isso não mais aconteça.
BBC News Brasil – O senhor acaba de voltar de Genebra, na Suíça e, recentemente, o Brasil se absteve de assinar uma uma declaração que condenava as violações de direitos humanos que estão acontecendo neste momento na Nicarágua. O atual governo diz defender os direitos humanos. Qual é a sua opinião sobre o cenário vivido hoje na Nicarágua?
Silvio Almeida – O cenário é preocupante. É um cenário no qual os relatórios demonstram que há violação de direitos humanos. Mas qual é a posição do Brasil? […] É que o Brasil quer sempre manter uma posição de diálogo e não caminhar no sentido de condenar violações de um lado e não condenar de outro lado, no sentido de que não queremos apontar o dedo para determinados países e não a outros que também cometem violações.
BBC News Brasil – Mas isso não dá a impressão de que o governo tem uma certa leniência com esse regime?
Silvio Almeida – O Brasil nunca teve e não tem leniência em relação a isso […] O Brasil não deixa e não deixará de reconhecer quando se está diante de violação de direitos humanos. Mas leniência, e eu acho que até uma irresponsabilidade, seria fechar as possibilidades de que a gente possa dar um tratamento necessário para isso.
BBC News Brasil – Entendo que o senhor coloca a questão da manutenção do diálogo como o motivo pelo qual o Brasil evita condenar frontalmente as violações que estão acontecendo na Nicarágua. Mas ao não fazê-lo, o governo não abre mão de liderar?
Silvio Almeida – Não, pelo contrário. O Brasil, diante de uma posição que privilegia o diálogo, ganha a possibilidade, inclusive, de liderar. Por que? Justamente porque fomenta o diálogo […] O Brasil não irá se calar diante de violação de direitos humanos.
BBC News Brasil – Mas ao não assinar (a declaração), o Brasil não se cala?
Silvio Almeida – Não, não se cala. O Brasil diz : “Vamos conversar. Vamos entender o que está acontecendo, vamos chamar aqui as pessoas para falarem a respeito do que está acontecendo e vamos tentar dar uma solução do problema que preserva, inclusive os direitos do povo nicaraguense”.
BBC News Brasil – Nos governos do PT, a população carcerária saiu de aproximadamente 300.000 pessoas para algo em torno de 622.000, segundo os dados oficiais. E essa maioria dessa população, o senhor sabe, é composta, em sua maioria, por jovens negros. Os governos do PT erraram em sua política carcerária?
Silvio Almeida – Eu acho que não são apenas os governos do PT. A dinâmica do Estado brasileiro se desenvolveu a partir de uma falsa ideia de que a punição seria, de alguma forma, o elemento fundamental do combate à criminalidade. Eu acho que isso é uma tônica de praticamente todos os governos do Brasil e que certamente se dá, também, até mesmo por inércia […] O presidente Lula falou especificamente comigo sobre isso e me pediu que nós pudéssemos pensar no âmbito em formas de se fazer com que as pessoas que estão presas e que não deveriam mais estar possam sair do sistema carcerário.